sábado, 25 de março de 2023

Os pequenos sorrisos da infância

 Semeávamos as palavras nas lágrimas do Tejo, enquanto junto a nós, um velho cacilheiro se perdia de amores pelo primeiro raio de Sol da manhã, e em cada punhado de palavras que lançávamos ao rio, um pedacinho de silêncio partia em direcção ao mar,

Tínhamos dentro de nós todos os sonhos, tínhamos dentro de nós todas as brincadeiras de um novo dia que brevemente começaria, que brevemente partiria, também ele, como partiram todos os sorrisos que conhecíamos.

Abraçava-a, pegava-lhe no cabelo de Primavera e sabia que do outro lado do rio, que do outro lado do rio havia um barco com mãos de prata e lábios de sangue; era o barco que me trouxe do outro lado do Oceano.

Uma criança chorava. Uma criança desiludida com os dias e com as noites e com os machimbombos…

O Tejo sabia que um dia, que um dia o meu corpo seria absorvido pelas suas mãos, e desde então, procuram nas suas águas um esqueleto sem nome, um esqueleto com asas, um esqueleto de vidro…

Semeávamos as palavras nas lágrimas do Tejo, enquanto junto a nós, um velho cacilheiro se perdia de amores pelo primeiro raio de Sol da manhã, os cigarros entre pequenas pausas para o café, levitavam e desapareciam como pássaros depois da tempestade, e nunca soube o nome daquela tempestade; como deixei de saber o nome das coisas, de todas as coisas.

Bebíamos pequenos tragos de uísque, dançávamos sobre a relva de Belém, à nossa volta, outros esqueletos preenchiam a tarde com piqueniques e outras coisas banais, fumávamos e bebíamos, e voávamos sobre uma Lisboa em construção,

Porque me mataram os esqueletos de prata?

Os barcos de regresso, diziam-nos que amanhã era o futuro, pequenos sorrisos num espelhos com janela para a Calçada da Ajuda, e ela, e ela percebia, aos poucos, que o meu esqueleto nunca mais seria encontrado naquele rio, naquele lugar, naquela cidade.

Hoje, hoje sou procurado pelas sombras daquela cidade, daquelas ruas, hoje sou maias uma das sombras que habitam os jardins onde crescem os pequenos sorrisos da infância.

Ergui-me da cama, abri a janela, puxei por um cigarro e ouvi da boca dela:

Vou embora.

Continuei a fumar, continuei a olhar o Tejo… até que ouvi o som desengonçado e perro da porta do quarto a fechar-se, como se fosse o fecho da tampa do meu caixão.

Depois, depois fechei a janela, escondi-me debaixo do chuveiro, e algumas horas depois, quando já de saída do quarto e chegando à rua, percebi que durante a noite alguém tinha mudado o nome daquela rua; e fiquei sem saber onde estava.

Apenas fiquei com o perfume de um rio, de um rio que pouco a pouco… morre dentro de mim, como morrem todas as coisas em que toco.

 

 

 

 

Alijó, 25/03/2023

Francisco

Mãos que escreviam palavras

 Nasci para sofrer

Nasci para fazer sofrer os outros.

Amei muito.

Fui amado.

Fui mais amado de que amei

Chorei

Fiz chorar.

 

Tive sonhos.

Muitos sonhos.

Hoje…

Hoje apenas espero que o vento me leve,

Que o vento me transporte para a derradeira viagem que me espera…

A longínqua viagem,

Sem destino,

Sem…

Sem o meu corpo.

 

Tive tudo.

Não tenho nada.

Tive o céu e a terra,

Tive poesia nas minhas veias…

Tive palavras,

Muitas palavras,

Livros,

Escrevi livros…

E hoje não tenho nada,

Não tenho as palavras,

Não tenho as mãos que escreviam as palavras…

 

Nem tenho mais livros para escrever.

Amei muito.

Fui muito mais amado de que amei…

Sofri…

Fiz sofrer todos aqueles que me amaram…

Farei sofrer todos aqueles que me venham a amar…

Nasci para sofrer

Nasci para fazer sofrer os outros.

Amei muito.

Fui amado.

Fui mais amado de que amei

Chorei

Fiz chorar…

 

 

 

 

Alijó, 25/03/2023

Francisco

Primavera

 São os teus olhos, meu amor,

As amêndoas da Primavera,

São os teus olhos, meu amor,

As lágrimas do mar,

 

São os teus olhos, meu amor,

As estrelas que a noite lança sobre o luar,

São os teus olhos, meu amor,

O Sol das manhãs de Inverno,

 

São os teus olhos, meu amor,

As palavras que semeio nas noites de insónia…

São os teus olhos, meu amor,

Meu amor dos teus olhos,

 

São os teus olhos, meu amor,

As flores do meu jardim,

Do meu jardim, meu amor,

Os teus olhos…

 

 

 

Alijó, 25/03/2023

Francisco Luís Fontinha

Em flor

 Mil silêncios

Mil pecados desta morte anunciada

Mil pedaços de nada

Entre mil sombras semeadas,

 

Mil desejos

E outros tantos sonhos

Mil desencantos…

Nos mil e um apedrejamentos,

 

Mil silêncios

Nestes braços cansados

Mil madrugadas…

Nos mil corpos assassinados,

 

Mil dias em solidão

Dos mil e um momentos de dor…

Mil tombos no chão

No chão em flor.

 

 

 

Alijó, 25/03/2023

Francisco Luís Fontinha

sexta-feira, 24 de março de 2023

Esta estrada

 Esta estrada

Uma linha curvilínea suspensa no espaço

Onde caminho

Caminho…

E sei que não me levará a sítio algum,

 

(e como a maioria das estradas

Não nos levam a sítio algum)

 

Esta estrada

De curvas e subidas ingremes

Sempre abraçada a um Deus arrogante

A um Deus impiedoso

Esta estrada,

 

Onde caminho

Onde estou

Onde morrerei como uma serpente

Bebendo o veneno

Em pequenos tragos,

 

Esta estrada

Abraçada a outra estrada

Sem estrada

Na minha infeliz estrada

De ter uma estrada…

 

 

 

Alijó, 24/03/2023

Francisco

As faúlhas da madrugada

 Caem sobre mim as faúlhas da madrugada

Canfora manhã adormecida

Caem sobre mim as espadas afiadas da solidão…

Enquanto a dor se veste de alegria

 

Esqueleto desventrado

Bebo o cálice do veneno

Bebo as lágrimas da existência

E estar vivo… parece uma cansada tarde junto ao rio

 

Oiço-te entre pedaços de néon

E avenidas sem nome

Avenidas da minha infância

Que apenas dormiam na minha mão

 

Caem sobre mim as metáforas do texto não escrito

Nas imagens de um negro quadro

Pincelado de tristeza

E oiço os gritos da morte

 

E oiço os gritos de alegria da morte

Tão feliz… que ela é

Veste-se de cinzento

E faz-se passear de limousine encarnada

 

Veado selvagem

Pedacinho de mar

Das esplanadas em luar

E volto a ouvir a voz do silêncio

 

E volto a ouvir a voz rouca da escuridão

A noite traz os petroleiros da insónia

A noite traz nas mãos os incêndios nocturnos de uma alma embriagada…

E depois

 

E depois poisa em mim a nuvem doente

Das metástases que apenas um corpo invisível compreende

E felizes aqueles que transportam em si

As metástases do sofrimento

 

Quando esperam no corredor

O regresso da esperança de voarem

Na esperança de uma leveza indefinida

Indiferente à vida

 

Indiferente à dor

Caem sobre mim as faúlhas da madrugada

Canfora manhã adormecida

Quando dos lábios da alvorada

 

Vêm a mim as árvores acorrentadas

Os pássaros voam sem perceberem que lá fora

Uma menina

Come os chocolates da inocência

 

E eu

Aprisionado nuns calções

Procuro as primeiras lágrimas da manhã

Que habitam junto ao capim

 

Abro a janela

Vou à janela

Puxo de um cigarro…

E lanço-me em busca do espelho onde me escondi em criança

 

E estatelo-me no chão frio da infância

Um triciclo com assento em madeira… entre lágrimas e suspiros

E eu acreditando que um dia

Um dia…

 

Qualquer dia

No outro dia

Hoje

Amanhã… o sofrimento se transformará em silêncio.

 

 

 

Alijó, 24/03/2023

Francisco

Meia dúzia de retractos

 Enquanto escrevo, morro, enquanto escrevo, suicido-me na tristeza do poema, enforco-me na agonia de uma tela sem nome, suspensa numa manhã junto ao Tejo, do rio, vêm a mim os tristes cacilheiros, que entre viagens, me trazem o silêncio da despedida,

E despeço-me sem ter de quem me despedir, apenas me restam meia dúzia de retractos, meia dúzia de sombras…

E muitas dúzias de sonhos; morram todos os sonhos.

Morram todos os sonhos e todos os sonhadores e todos os poetas e todos os pássaros… e que morram também todas as noites com luar.

E já agora, que morram todos os cacilheiros e todos os barcos da minha infância.

Puxo do último cigarro. O veneno que me mantêm vivo e de boa saúde…

Inesperadamente, começo a odiar todos aqueles que morreram e que amei. Inesperadamente, começo a odiar-me, começo a odiar as minhas palavras, os meus desenhos… e todos os meus sonhos.

Enquanto escrevo, morro.

Suicido-me na tristeza do poema, enforco-me na agonia de uma tela sem nome como todas as minhas telas, sem nome.

De que serve um nome?

 

 

 

Alijó, 24/03/2023

Francisco