domingo, 20 de novembro de 2022

O poço da morte

 Pegavas na minha mão, com o olhar, desenhávamos pequenos círculos de sono no quintal, à nossa volta, não, ainda não tínhamos inventado a paixão, apenas um qualquer retracto que ainda hoje anda lá por casa, e para te identificar, necessito de viajar até ao mais profundo silêncio marinho, e aí sim, andas por aqui com o mesmo vestido branco, com um pequeno laço na parte traseira e calças as mesmas sandálias; e cinquenta anos depois, ainda guardo as nuvens soltas ao vento que o teu cabelo descrevia sobre mim.

Brincávamos como se não houve mais amanhã, como se o tempo tivesse parado debaixo das mangueiras, e hoje, as mangueiras já não são mangueiras, e tu, tu já não és tu, e eu, e eu já sou eu,

Dormíamos a sesta,

Ouvíamos os sons melódicos de um pequeno rádio a pilhas, e depois lançávamos sobre as sombras dos coqueiros as cordas invisíveis que nos prendiam à terra de onde brotamos e hoje, eu e tu, desconhecemos porque partimos; e ouvia-te silenciar no escuro da tarde – um dia casamos.

Brincávamos enquanto a noite se entranhava na primeira sanzala das tristes madrugadas, e hoje dou-me conta que o velho que transportava o tempo, e diga-se que por tempo entenda-se por dias, horas, segundos, minutos, um dia, outro dia, amanhã, ontem, Sábado, Domingo, e o velho Domingos, numa tarde de insónia, tropeçou junto ao Mussulo e a caixa do tempo caiu sobre a areia e o tempo num pequeno sorriso de vaidade, morreu. Hoje, a noite é o dia, o dia é a noite, a tarde passou para a manhã e esta para a tarde, e quanto a um dia

Um dia casamos,

Perdeu-se enquanto uma gaivota faminta poisou sobre o loiro cabelo de nuvem adormecida que debaixo das mangueiras brincava às mães e aos pais, e sabíamos que brevemente um barco no levaria até às trevas das flores de papel.

Pegavas na minha mão, com o olhar, desenhávamos pequenos círculos de sono no quintal, à nossa volta, e anos mais tarde, sentado junto ao Tejo, enquanto conversava com um velho cigarro em desejo, contava os barcos que entravam e saiam; num deles um miúdo acenava-me, e hoje sei que o velho que fumava cigarros junto ao Tejo e me acenava, era eu.

Um dia serás mãe, avó, a celulite entrará em ti, e dos fios com que eu puxava o mar e que tu sabias tão bem arrumar no bolsinho do bibe, poisam hoje sobre o meu peito. E despedimo-nos numa tarde junto ao mar,

E procuro-te neste velho retracto, e percebo que o avô Domingos mesmo depois de morrer ainda se faz passear pelas ruas de Luanda, puxando o velho machimbombo e às costas transporta a caixa do tempo. Hoje, não tenho tempo para recordar a tua mão que poisavas nos meus olhos e fazias-me acreditar que os papagaios em papel, um dia, um dia voavam…

Sempre um dia. Sempre um dia.

O meu pai, não muitas vezes, levava-nos a ver o poço da morte, diga-se que nunca tive nem tenho paciência para qualquer tipo de desportos, mas fascinavam-me os círculos de luz que que um rapazote em cima de uma motorizada deixava ficar na minha boca; e ela timidamente dizia-me que um dia…

Um dia, virá a morte, um dia, virão as roupas e os caixotes em madeira que deixamos ficar junto ao mar, e um dia, não sei qual, um dia voarei nos teus olhos, que dormem neste velho retracto e que já não recordo o teu nome.

Hoje, mais de cinquenta anos, sentado numa cadeira de vime e de cigarro ao canto dos lábios, conto os velhos cacilheiros que levam amontoados de corpos para a margem Sul; perdi-me numa noite de neblina.

Deixei de contar os barcos.

Deixaste de pegar na minha mão.

E o capim revoltado sorria-nos em silenciados sorrisos que hoje apenas existem neste retracto, e não percebendo porque a noite é sempre triste, procuro a tua mão enquanto à tua volta, bonecos, carrinhos, brincam de mãos entrelaçadas até que a tarde se extinga junto ao mar.

 

 

 

 

 

Alijó, 20/11/2022

Francisco Luís Fontinha

Os amigos que não estão

 Se me procuras,

Não estou; a verdade é que nunca estive

Onde estou e pensam que estive.

Não tenho número de polícia,

Destinatários para enviar cartas,

Os meus amigos,

Os verdadeiros amigos, morreram. Quase todos por cancro.

Uma merda, o cancro.

 

Escrevo poemas aos caracóis,

Às abelhas e aos pássaros,

Às árvores e às putas das árvores

Onde poisam os cornudos dos pássaros.

 

E os caracóis ouvem-me,

São afáveis, sinceros e honestos,

São como eu; quando a conversa não me interessa,

Escondo-me em casa,

Dentro desta carapaça que transporto desde que nasci.

 

Já as abelhas,

Bom, com essas não me dou muito bem,

Sou alérgico às abelhas,

Sou alérgico à mãe das abelhas,

Que pensam que os filhos,

Tal como os pássaros,

São cornudos diplomados,

Mas só os caracóis é que me escutam,

 

Os únicos a quem escrevo cartas.

 

Vou ao cemitério, e quase todos os gajos e gajas que lá habitam,

Levou-os o cancro; os meus amigos.

E vou continuando a escrever cartas aos amigos que me restam…

Os caracóis,

 

E de caracol em caracol,

De flor em flor,

Palavra puxa palavra,

Penso na merda do Natal que se aproxima;

Por mim, proibia o Natal e merdas afins…

E devia haver censura para quem festeja o Natal e prisão domiciliária,

 

E lá terei de entrar no cemitério,

E de campa em campa,

Feliz Natal companheiro,

Bom ano, minha querida,

Brevemente estaremos todos à volta da fogueira,

(mas qual fogueira, caralho)

Se nem fogueira vai haver,

 

Que esta terra foi excomungada, ai isso foi.

Tinha um amigo, amigo de verdade,

Quando se aproximava o Natal,

Oferecia-me erva e erva e erva para fumar…

E fumávamos erva enquanto o tempo se escoava nos anéis de Saturno,

E o gajo falava e o gajo falava e o gajo não se calava,

 

Mas calou-se; e morreu.

 

O meu pai, no Natal, dava-me livros,

Livros, livros e muitos livros,

A minha mãe, livros,

Fui um felizardo, o felizardo dos livros.

 

E sabes, meu amigo caracol,

Sabes?

Que se foda o Natal…

 

 

 

 

 

Alijó, 20/11/2022

Francisco Luís Fontinha

Navio

 Sou o comandante deste pobre navio.

Um objecto de sucata,

Toneladas de aço,

Multidões que se escondem em corpos,

Multidões com muitos braços,

Com muitas pernas,

Com pénis e vaginas,

Olhos e lábios e sorrisos e pequenos luares,

Mares,

Canções e canetas,

 

Pedras,

Pedras em silêncio,

E silêncios em pedras,

Que morrem,

Que nascem,

Que fodem,

Que me fodem

Todos os dias,

Entre segundos e minutos,

A todas as horas que o dia esconde,

 

E se me perguntarem o que me esconde o dia,

Diria…

Nada,

 

Como nada são as palavras que escrevo,

Durante o dia,

Da noite e à noite,

Nada,

Como nada me escondo do nada,

Sabendo que entre o nada e o medo,

 

Prefiro o medo.

E este navio é impaciente,

Um pouco louca até,

Sucata,

Com um coração de lata,

Com telhado zincado, minha pobre cubata.

 

E eu o pobre comandante,

O gajo que puxa o cordel onde habitam os meus cacilheiros

Com marinheiros com putas com flores com shots de uísque aldrabado,

Depois sentava-me em Belém,

Escrevendo palavras também elas aldrabadas,

Digamos que sou um charlatão das palavras,

Um vigarista da poesia,

E mesmo assim, não sabendo nada, sei que há mulheres que gostam do que escrevo,

 

Coitadas delas,

Coitado de mim,

Nem elas,

Nem eu,

Somos um jardim,

 

E à frente deste navio,

Eu, o comandante sem diploma de comandante,

Eu, o poeta, sem diploma de poeta,

Eu, o velho cacilheiro sem rio para brincar.

 

E este navio vai andando,

Com a graça de Deus,

Umas vezes afunda,

Outras,

Faz-se passear na lua,

 

E tal como as minhas palavras,

Sem futuro,

Das palavras à morte,

O diabo que o parta e escolha,

Esta sorte,

Ser comandante de um navio sem nome; um navio sem sorte.

 

 

 

 

 

Alijó, 20/11/2022

Francisco Luís Fontinha

sábado, 19 de novembro de 2022

Os filhos da saudade

 Nunca soube o teu nome

Nem porque me escondeste na algibeira dos sonhos

Escrevíamos poemas sem sentido

Que só as árvores do sono percebiam

Porque do sono vinham a nós todas as flores e todos os males da cidade.

 

A cidade era uma alcateia de sombras

Eram pedras cinzentas que depois de sepultadas na tua mão

Cresciam árvores anãs com os lábios pincelados de encarnada insónia

Porque um filho também chora

As lágrimas negras das palavras.

 

E o Tejo ali tão perto

Enquanto tínhamos dentro do peito

Uma nuvem cravada de pregos

Que a espingarda da paixão disparava em nós

E morríamos dentro do desejo.

 

E quando acordávamos da morte

Tínhamos na boca os beijos da noite anterior

E as réstias ao pescoço

Que a própria morte tinha alicerçado em nós

Como éramos felizes à sombra dos barcos…

 

E sabíamos que havia sempre um barco que nos trazia o silêncio da noite

Como a morte nos transportava para o caos da manhã

O rio sabia o teu nome

Mas eu nunca o soube…

Porque os filhos da saudade não têm nome.

 

 

 

 

Alijó, 19/11/2022

Francisco

As labaredas do sono

 Junto ao mar

Este cemitério de pássaros

Onde se escondem as palavras da manhã

Incendiada pela tua doce mão,

 

A cidade perde-me

E das ruas sem transeuntes

Oiço as labaredas do sono

Que todas as noites poisam em mim,

 

Há sempre uma janela que me olha

Há sempre um espelho que me desenha nos teus olhos

Mas das nossas bocas

O grito; o doce grito que a saudade ergueu sobre ti.

 

 

 

 

Alijó, 19/11/2022

Francisco

Clitóris da insónia

 O oiro dos teus olhos

Em cada palavra escrita

Em direcção às alegres nortadas

Dos pobres jardins de prata

Termina o corpo

Nas tuas mãos incendiadas pelo clitóris da insónia

Perco-me neste livro

Que escrevi

Escrevo

E queimo mesta fogueira de medo

A cidade morre-me

A cidade cansa-se da minha sombra

E encontro os círculos do desejo

Nos teus lábios de silêncio

E sei que as minhas cartas são poeira

Sombra destes pobres ossos

À janela da água salgada que alimentam o teu cabelo

E dizem-me que amanhã

As árvores pertencerão às dízimas lâminas deste corpo em combustão

Como toneladas de sucata na lareira da paixão.

 

 

 

 

 

Alijó, 19/11/2022

Francisco Luís Fontinha

A paixão das espadas

 Oiço do vento que me abraça

A voz rouca das estrelas mortas,

 

Cruzo os braços,

Incendeio os teus lábios com beijos

Quando sei que do teu olhar

Uma canção se despede de mim,

E deste grito, a paixão das espadas que o sono traz da montanha,

 

Bebo o veneno das palavras que me alimentam,

Bebo a espuma que transborda do mar,

E fico inerte, e fico doente,

E dou-me conta que a morte é apenas um retracto,

 

Bebo da tua boca

A sapiente canção que deixei sobre a mesinha-de-cabeceira,

E a corda com que ato este embrulho, esconde-se na minha mão,

Como se escondem os muros em xisto

Destes socalcos em flor,

 

Ai meu amigo…

Onde estão os nossos barcos

Que habitavam nas serpentes da insónia,

 

E não sabiam o nosso nome.

 

 

 

 

Alijó, 19/11/2022

Francisco Luís Fontinha