Pegavas na minha mão, com o olhar, desenhávamos pequenos círculos de sono no quintal, à nossa volta, não, ainda não tínhamos inventado a paixão, apenas um qualquer retracto que ainda hoje anda lá por casa, e para te identificar, necessito de viajar até ao mais profundo silêncio marinho, e aí sim, andas por aqui com o mesmo vestido branco, com um pequeno laço na parte traseira e calças as mesmas sandálias; e cinquenta anos depois, ainda guardo as nuvens soltas ao vento que o teu cabelo descrevia sobre mim.
Brincávamos como se não
houve mais amanhã, como se o tempo tivesse parado debaixo das mangueiras, e
hoje, as mangueiras já não são mangueiras, e tu, tu já não és tu, e eu, e eu já
sou eu,
Dormíamos a sesta,
Ouvíamos os sons
melódicos de um pequeno rádio a pilhas, e depois lançávamos sobre as sombras
dos coqueiros as cordas invisíveis que nos prendiam à terra de onde brotamos e
hoje, eu e tu, desconhecemos porque partimos; e ouvia-te silenciar no escuro da
tarde – um dia casamos.
Brincávamos enquanto a
noite se entranhava na primeira sanzala das tristes madrugadas, e hoje dou-me
conta que o velho que transportava o tempo, e diga-se que por tempo entenda-se
por dias, horas, segundos, minutos, um dia, outro dia, amanhã, ontem, Sábado,
Domingo, e o velho Domingos, numa tarde de insónia, tropeçou junto ao Mussulo e
a caixa do tempo caiu sobre a areia e o tempo num pequeno sorriso de vaidade, morreu.
Hoje, a noite é o dia, o dia é a noite, a tarde passou para a manhã e esta para
a tarde, e quanto a um dia
Um dia casamos,
Perdeu-se enquanto uma
gaivota faminta poisou sobre o loiro cabelo de nuvem adormecida que debaixo das
mangueiras brincava às mães e aos pais, e sabíamos que brevemente um barco no
levaria até às trevas das flores de papel.
Pegavas na minha mão, com
o olhar, desenhávamos pequenos círculos de sono no quintal, à nossa volta, e
anos mais tarde, sentado junto ao Tejo, enquanto conversava com um velho
cigarro em desejo, contava os barcos que entravam e saiam; num deles um miúdo
acenava-me, e hoje sei que o velho que fumava cigarros junto ao Tejo e me
acenava, era eu.
Um dia serás mãe, avó, a
celulite entrará em ti, e dos fios com que eu puxava o mar e que tu sabias tão
bem arrumar no bolsinho do bibe, poisam hoje sobre o meu peito. E despedimo-nos
numa tarde junto ao mar,
E procuro-te neste velho
retracto, e percebo que o avô Domingos mesmo depois de morrer ainda se faz
passear pelas ruas de Luanda, puxando o velho machimbombo e às costas
transporta a caixa do tempo. Hoje, não tenho tempo para recordar a tua mão que
poisavas nos meus olhos e fazias-me acreditar que os papagaios em papel, um
dia, um dia voavam…
Sempre um dia. Sempre um
dia.
O meu pai, não muitas
vezes, levava-nos a ver o poço da morte, diga-se que nunca tive nem tenho paciência
para qualquer tipo de desportos, mas fascinavam-me os círculos de luz que que
um rapazote em cima de uma motorizada deixava ficar na minha boca; e ela
timidamente dizia-me que um dia…
Um dia, virá a morte, um
dia, virão as roupas e os caixotes em madeira que deixamos ficar junto ao mar,
e um dia, não sei qual, um dia voarei nos teus olhos, que dormem neste velho retracto
e que já não recordo o teu nome.
Hoje, mais de cinquenta anos,
sentado numa cadeira de vime e de cigarro ao canto dos lábios, conto os velhos
cacilheiros que levam amontoados de corpos para a margem Sul; perdi-me numa
noite de neblina.
Deixei de contar os
barcos.
Deixaste de pegar na
minha mão.
E o capim revoltado
sorria-nos em silenciados sorrisos que hoje apenas existem neste retracto, e
não percebendo porque a noite é sempre triste, procuro a tua mão enquanto à tua
volta, bonecos, carrinhos, brincam de mãos entrelaçadas até que a tarde se
extinga junto ao mar.
Alijó, 20/11/2022
Francisco Luís Fontinha