quarta-feira, 16 de novembro de 2022

As mãos de Deus

 Espero que os dias

Se esqueçam de mim

Que a luz se extinga

Nas mãos de Deus

Que transporta a noite

 

E quando tiver a noite

No meu peito deliciado pelas gaivotas do teu olhar

Vou inventar o sono

Vou erguer-me até que o luar morra

Nas minhas pálpebras amaldiçoadas por este triste silêncio

 

Esta pequena folha que habita neste meu corpo doente

Espera as estrelas e as pedras e os rios

Orgasmos de néon poisam na cidade

Até que me liberto das abelhas em flor

E das palavras assassinas que me habitam

 

Escondo-me

Fujo do poema em cio como os peixes fogem dos barcos

E dos barcos envenenados pelo ciúme

Recebo o dia

E transformo-o em delírio

 

Ouve-me enquanto a cidade fervilha

E os pássaros filhos da liberdade

Mergulham na minha sombra

Uma janela onde poiso a cabeça envenena-se com a saliva

E sou incendiado pela paixão

 

 

 

 

Alijó, 16/11/2022

Francisco Luís Fontinha

Carta do pequeno silêncio

 

Este velho que escuta da madrugada as primeiras lágrimas da manhã, incendeia-se nos teus olhos e pouco a pouco, em pequenos pedaços de cansaço, despede-se da vida como se despedem da fogueira as labaredas envenenadas do silêncio.

Escrevo esta carta sem destinatário, em busca de almas puras como a espuma cintilante do mar, e sei que sou o único que olha o céu quando este acorda debaixo de uma tempestade de saudade.

Morro-me.

Ergo a cabeça, e em pequenos lances, atiro para a montanha as palavras que recuso escrever, por medo, por nada, mas deste cigarro, oiço aquela velha canção que me cantavam enquanto eu numa alcofa pensava que tinha o mar semeado no tecto, coisas da minha mãe, sempre a enganar-me como me enganava quando me dizia que o frio era passageiro, e que um dia regressávamos.

Nunca regressamos. E pergunto-me se algum dia saímos daquela terra onde eu tinha o mar desenhado no tecto da alcofa.

Este velho deixou de comer. Este velho deixou de sonhar que todos os barcos, mesmo aqueles mais gorduchos, são construídos em papel, como todos os beijos, como todos os livros, como todos os quadros. Papel…

Morro-me, aceitando que sou apenas um cadáver de vidro em danças de salão e em busca da sombra infinita das mangueiras que sombreavam a minha infância.

E escrevo-me. E escrevo-te acreditando que as acácias conseguem sorrir.

E escrevo-te, remetente sem destinatário, palhaço e trapezista de um circo apelidado de vida; que rica vida, meu velho companheiro.

Que rica vida, quando me morro em ti e me despeço deste velho cadáver que escuta das madrugadas as primeiras lágrimas da manhã.

Pego nesta enferrujada espingarda, tão velha, tão velha… que apenas dispara beijos contra as enormes marés de sono; e este velho deixou de dormir, e este velho deixou de sorrir, enquanto sinto os sons melódicos das ruas sem transmutes, e esta espingarda enferrujada veste-se com as roupas que sobejaram do primeiro beijo.

E do primeiro poema, cresceu a primeira lágrima da manhã, e do último poema, regressou o primeiro grito em forma de velho, esse mesmo, o velho que cresceu menino dos calções e morreu pedra granítica ao deitar; duas pequenas drageias de paixão, e uma colher de sopa de estrelas-do-mar.

Uma carta, um remetente, nenhum destinatário. E muitos barcos, e muitos barcos em papel.

E percebo agora que sou este velho que escuta da madrugada as primeiras lágrimas da manhã, incendeia-se nos teus olhos e pouco a pouco, em pequenos pedaços de cansaço, despede-se da vida como se despedem da fogueira as labaredas envenenadas do silêncio. E morro-me.

E escrevo-te.

Deste pequeno silêncio,

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 16/11/2022

(ficção)

Cacimbo

 

Deixei de sentir

Este corpo que me transporta

Já não sou nada

Deixei de sentir a melodia das palavras

Deixei de comer

 

E de olhar as madrugadas

Deixei de viver

Debaixo deste velho cacimbo

De palmeiras invisíveis

E de mares angustiados

 

Deixei de olhar estas velhas fotografias

De ossos

E de rostos envenenados pelo silêncio

Deixei de sentir

Sentir as cores da madrugada

 

Deixei de perceber

O segredo das pedras cinzentas

Deixei de me olhar

Quando este espelho de insónia

É a saudade que lamentas

 

Deixei de beber estas lágrimas que dormem na fogueira

Quando este poema que me assassina

Brinca nesta pobre lareira

Deixei de sentir

Sentir este corpo que me transporta

 

 

Alijó, 16/11/2022

Francisco Luís Fontinha

terça-feira, 15 de novembro de 2022

O sonâmbulo das palavras

 Trazes até mim

O velho sonâmbulo das palavras

O velho inconformado

Lavadinho

Diplomado

 

Entre o sexo e o desejo

Quando percebe que desejado

Ser o velho sonâmbulo

Como diz o velho ditado

Que o velho arde na fogueira

 

Ele não sabe

Que o mar habita no seu peito

Que os cigarros que fuma

São pinceladas coxas em pequenos voos de ninguém

E das palavras do velho sonâmbulo

 

Uma flor de jasmim

Corre sobre os carris da insónia

Os guindastes que rosnam no peito

São papoilas de saudade

São palavras deste velho

 

Sonâmbulo

Sem perceber que já não tem idade

Cidade

Ou localidade onde dormir

Apenas morrer e ser o sonâmbulo das palavras

 

 

 

 

Alijó, 15/11/2022

Francisco Luís Fontinha

O nosso livro

 

Este livro

O nosso livro

Nestas pequenas folhas floreadas

Onde semeio as nossas palavras

E desenho os nossos olhares

 

Este livro

Que cresce

E é a manhã quando acorda

Este livro

Estas palavras

 

Que habitam sobre as árvores

As nossas árvores

Das nossas palavras

Deste pequeno livro

Onde escrevo todos os dias

 

E vai voando como um beijo

Na boca proibida da paixão

Este livro

O nosso livro

Que é vento que é chuva que é amor

 

Que não ouve

Escuta

Mas grita

E se revolta

À nossa volta

 

 

Alijó, 15/11/2022

Francisco Luís Fontinha

Pincelado sorriso

 

Não preciso de flores

Não quero chocolates

Não preciso que o sol nasça em cada manhã

Não preciso de palavras

 

Não preciso de flores

Do mar

Ou que a noite se esqueça de mim

Não preciso da lua

 

Do luar

Não

Não preciso de flores

Apenas preciso de um pincelado sorriso nos teus olhos

 

 

 

Alijó, 15/11/2022

Francisco Luís Fontinha

segunda-feira, 14 de novembro de 2022

Insaciados beijos

 Entre quatro paredes

Dorme esta infinita luz

Debaixo deste embriagado tecto

Oiço todas as palavras

Oiço todos os insaciados beijos

 

Converso com as poeirentas fotografias

E não percebo o que pensam estes livros

O que pensam eles de mim

O que são eles para mim

Talvez amor

 

Talvez paixão

E questiono estes pobres livros

Quando saem à noite

Porque está esta infinita luz

Aprisionada entre quatro paredes

 

E melhor seria

Ser eu o prisioneiro

Não a infinita luz

Não estes pobres livros

Em lenta morte rumo ao mar

 

Quatro paredes

Um tecto

O louco brinca

O louco dorme

Entre quatro paredes e um tecto embriagado

 

 

 

 

Alijó, 14/11/2022

Francisco Luís Fontinha