Este velho que
escuta da madrugada as primeiras lágrimas da manhã, incendeia-se nos teus olhos
e pouco a pouco, em pequenos pedaços de cansaço, despede-se da vida como se
despedem da fogueira as labaredas envenenadas do silêncio.
Escrevo esta
carta sem destinatário, em busca de almas puras como a espuma cintilante do
mar, e sei que sou o único que olha o céu quando este acorda debaixo de uma
tempestade de saudade.
Morro-me.
Ergo a cabeça, e
em pequenos lances, atiro para a montanha as palavras que recuso escrever, por
medo, por nada, mas deste cigarro, oiço aquela velha canção que me cantavam
enquanto eu numa alcofa pensava que tinha o mar semeado no tecto, coisas da
minha mãe, sempre a enganar-me como me enganava quando me dizia que o frio era
passageiro, e que um dia regressávamos.
Nunca regressamos.
E pergunto-me se algum dia saímos daquela terra onde eu tinha o mar desenhado
no tecto da alcofa.
Este velho
deixou de comer. Este velho deixou de sonhar que todos os barcos, mesmo aqueles
mais gorduchos, são construídos em papel, como todos os beijos, como todos os
livros, como todos os quadros. Papel…
Morro-me,
aceitando que sou apenas um cadáver de vidro em danças de salão e em busca da
sombra infinita das mangueiras que sombreavam a minha infância.
E escrevo-me. E escrevo-te
acreditando que as acácias conseguem sorrir.
E escrevo-te,
remetente sem destinatário, palhaço e trapezista de um circo apelidado de vida;
que rica vida, meu velho companheiro.
Que rica vida,
quando me morro em ti e me despeço deste velho cadáver que escuta das
madrugadas as primeiras lágrimas da manhã.
Pego nesta
enferrujada espingarda, tão velha, tão velha… que apenas dispara beijos contra
as enormes marés de sono; e este velho deixou de dormir, e este velho deixou de
sorrir, enquanto sinto os sons melódicos das ruas sem transmutes, e esta
espingarda enferrujada veste-se com as roupas que sobejaram do primeiro beijo.
E do primeiro
poema, cresceu a primeira lágrima da manhã, e do último poema, regressou o
primeiro grito em forma de velho, esse mesmo, o velho que cresceu menino dos
calções e morreu pedra granítica ao deitar; duas pequenas drageias de paixão, e
uma colher de sopa de estrelas-do-mar.
Uma carta, um
remetente, nenhum destinatário. E muitos barcos, e muitos barcos em papel.
E percebo agora
que sou este velho que escuta da madrugada as primeiras lágrimas da manhã,
incendeia-se nos teus olhos e pouco a pouco, em pequenos pedaços de cansaço,
despede-se da vida como se despedem da fogueira as labaredas envenenadas do
silêncio. E morro-me.
E escrevo-te.
Deste pequeno
silêncio,
Francisco Luís
Fontinha
Alijó,
16/11/2022
(ficção)