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quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Carta do pequeno silêncio

 

Este velho que escuta da madrugada as primeiras lágrimas da manhã, incendeia-se nos teus olhos e pouco a pouco, em pequenos pedaços de cansaço, despede-se da vida como se despedem da fogueira as labaredas envenenadas do silêncio.

Escrevo esta carta sem destinatário, em busca de almas puras como a espuma cintilante do mar, e sei que sou o único que olha o céu quando este acorda debaixo de uma tempestade de saudade.

Morro-me.

Ergo a cabeça, e em pequenos lances, atiro para a montanha as palavras que recuso escrever, por medo, por nada, mas deste cigarro, oiço aquela velha canção que me cantavam enquanto eu numa alcofa pensava que tinha o mar semeado no tecto, coisas da minha mãe, sempre a enganar-me como me enganava quando me dizia que o frio era passageiro, e que um dia regressávamos.

Nunca regressamos. E pergunto-me se algum dia saímos daquela terra onde eu tinha o mar desenhado no tecto da alcofa.

Este velho deixou de comer. Este velho deixou de sonhar que todos os barcos, mesmo aqueles mais gorduchos, são construídos em papel, como todos os beijos, como todos os livros, como todos os quadros. Papel…

Morro-me, aceitando que sou apenas um cadáver de vidro em danças de salão e em busca da sombra infinita das mangueiras que sombreavam a minha infância.

E escrevo-me. E escrevo-te acreditando que as acácias conseguem sorrir.

E escrevo-te, remetente sem destinatário, palhaço e trapezista de um circo apelidado de vida; que rica vida, meu velho companheiro.

Que rica vida, quando me morro em ti e me despeço deste velho cadáver que escuta das madrugadas as primeiras lágrimas da manhã.

Pego nesta enferrujada espingarda, tão velha, tão velha… que apenas dispara beijos contra as enormes marés de sono; e este velho deixou de dormir, e este velho deixou de sorrir, enquanto sinto os sons melódicos das ruas sem transmutes, e esta espingarda enferrujada veste-se com as roupas que sobejaram do primeiro beijo.

E do primeiro poema, cresceu a primeira lágrima da manhã, e do último poema, regressou o primeiro grito em forma de velho, esse mesmo, o velho que cresceu menino dos calções e morreu pedra granítica ao deitar; duas pequenas drageias de paixão, e uma colher de sopa de estrelas-do-mar.

Uma carta, um remetente, nenhum destinatário. E muitos barcos, e muitos barcos em papel.

E percebo agora que sou este velho que escuta da madrugada as primeiras lágrimas da manhã, incendeia-se nos teus olhos e pouco a pouco, em pequenos pedaços de cansaço, despede-se da vida como se despedem da fogueira as labaredas envenenadas do silêncio. E morro-me.

E escrevo-te.

Deste pequeno silêncio,

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 16/11/2022

(ficção)