Meu amor, hoje pertenço-te como me pertencem as estrelas em papel das tuas lágrimas, quando da noite, sem que ninguém percebesse, trazias a mim as palavras semeadas das primeiras chuvas da manhã, e sabíamos que os pássaros nocturnos do Inverno poisavam nas tristes árvores das tuas mãos,
E sabíamos que um dia
vinham a nós os triângulos da madrugada,
Meu amor, hoje
pertenço-te como pertencem as espingardas das alegres marés do infinito
amanhecer,
Um dia,
Tristes,
As palavras do teu olhar.
Vivíamos nas margens
invisíveis do rio sem nome, e entre as pontes do sono, vinham a nós as sombras
dos velhos aviões que sobrevoavam as mangueiras entre danças no quintal de
Luanda, o triciclo, ensonado, cantava quando o miúdo dos calções lhe pegava na
mão
E ele,
Não, mãe, não.
O medo.
A LHÁ lá ao fundo, e
suspenso no pescoço da mãe, que ambos não ultrapassavam os quarenta e cinco
quilogramas, desenhava pequenos círculos de luz sobre uma LHÁ até perder de
vista, depois, vinha novamente o triciclo, e ambos sabíamos que em breve
regressaria a noite aos lábios da Princesa lunar, como regressaram muito mais
tarde todas as pedras e todas as folhas das árvores em despedida,
O medo.
Da LHÁ, todas as tardes
de Domingo, erguiam-se pequeninos corações de prata e percebia-se que dos seus
olhos lacrimejantes da maré dos sonhos, um pedaço de paixão poisaria na sua
mão, como muitos anos mais tarde, poisaram as nuvens sem nome.
Depois, um dia,
esqueceu-se de acordar.
A janela tinha ficado
aberta, e a noite quase a terminar, escrevia poemas sobre o lençol desossado do
corpo putrefacto na infinita madrugada, e como todas as madrugadas, uma fina
lâmina de paixão abraçava-a e beijava-lhe cada pedacinho de milímetro quadrado
do corpo, e o caule e as folhas, murchas, deitavam-se sobre a sombra de sémen que
um ausentado crucifixo envenenado tinha derramado, enquanto sobre a
mesinha-de-cabeceira, um velho relógio engasgava-se entre as dez e as doze
horas, e nunca percebemos porque morreu,
Como morrem os relógios,
meu amor?
Morrem como a LHÁ,
E brincam como a LHÁ…
Meu amor, hoje
pertenço-te como me pertencem as estrelas em papel das tuas lágrimas, quando da
noite, sem que ninguém percebesse, trazias a mim as palavras semeadas das
primeiras chuvas da manhã, e sabíamos que os pássaros nocturnos do Inverno
poisavam nas tristes árvores das tuas mãos,
E sabes, mãe?
Percebi que uma mãe nunca
tem nojo do filho,
Até que ele se transforme
em poeira,
Acordávamos de mãos
entrelaçadas como entrelaçados sonhos acordavam nos nossos lábios, depois, um
beijo despedia-se,
Maldita mosca!
Não percebi, meu amor…
Ninguém percebeu,
Do rosto encharcado de
sangue, as feridas silenciosas viviam como vivem as flores no meu pobre jardim,
E como viviam as flores
do teu pobre jardim, meu amor?
Ensonadas, meu amor,
ensonadas como todas as nossas noites.
Ele chorava.
Ela rezava.
Eu…
Pedia a Deus que uma
equação qualquer resolvesse o meu problema, mas tal como ela, nenhuma equação
veio a mim,
Ele,
Ela,
Lágrimas de sangue, meu
querido.
E de sangue,
Eram feitas as palavras
dele, quando se escondia debaixo da colcha como se fosse uma criança; uma
criança que acabava de fazer uma qualquer asneira, coisas sem interesse, coisas
de criança.
E do peito, uma lágrima de
sono acordou.
(LHÁ=água do mar)
Alijó, 12/11/2022
Francisco Luís Fontinha