Navego no teu corpo
inflamado pelo silêncio da noite. Amar o oiro que poisa nos teus lábios, saber
que todas as manhãs acordas na infinita insónia, és visitada durante a noite
pelas tempestades marítimas dos livros, trazes na boca todas as palavras, as
simples, as complicadas e, as órfãs da minha mão.
Escrevo-te, meu amor.
Hoje a manhã estava
cansada de ter brincado com o teu corpo durante a noite, sabes, todas as noites
são uma passagem secreta para a liberdade, lá fora tínhamos a chuva que iluminava
o pequeníssimo quatro onde dois pássaros se abraçavam, sabiam que no final da
tarde, por volta das dezassete horas, vinham até nós as garças, os corvos e,
todas as correntes marítimas onde ontem à noite deixe o meu veleiro aportado. Tenho
pena das brincadeiras junto às mangueiras.
As flores da tua
sepultura sabem que a água jorra de dentro do poema, redopia nas rochas
inanimadas que só a noite consegue despertar. É proibido tomar café; os livros
tornaram-se bens não acessíveis às mãos do homem com o chapéu de palha, o miúdo
pelidava-o de “chapelhudo”, tonto.
Os meninos sabiam que no
quintal havia sempre um papagaio em papel, a mãe, carinhosamente, desenhava-lhe
sombras e pequenas argolas, sabendo que ele, o menino dos calções, quase nunca
comia fruta. “Tem bicho”. Pobre miúdo.
Tínhamos um machimbombo
que era conduzido pelo avô Domingos e, todos os Domingos, junto à tarde,
percorria amorosamente todas as ruas de Luanda; íamos à praia, fazíamos brincadeiras
debaixo das mangueiras, às vezes cansadas, outras, distantes das marés de
granito que assombrava a casa. Hoje, o machimbombo é apenas uma fotografia em
silêncio na parede da sala.
Acordei pensando que te
abraçava e, de tantas palavras escrever durante a noite, abraçava-te mesmo, de
verdade, como o miúdo dos calções quando se agarrava às pernas da mãe; estás
tão grande, meu menino.
Cresci. Vomitei palavras
numa Lisboa incandescente, anos oitenta, cidade prometida e das canções, que
fabricavam em mim um grandioso livro de poesia. Sentava-me no rio, não
imaginava que tantos anos depois te abraçava e dormia na tua cama camuflada
pelas sanzalas desconhecidas e, sabes, tenho saudades do cheiro do capim,
depois da chuva.
Navego no teu corpo
inflamado pelo silêncio da noite. Amar o oiro que poisa nos teus lábios,
saborear a tua boca de amêndoa das janelas em flor, quando o jardim acorda e
todos os pássaros parem loucos pela simples razão de ser dia. A boca, o beijo
do narciso quando junto ao mar, ela e ele, parecem dois corpos suspensos na
alvorada. Os corpos incham, ganham forma e crescem como as plantas em papel.
Amanhã saberei a razão de hoje não estar triste, mas triste porquê? Se todas as
flores são belas e todos os pássaros regressaram de Luanda comigo…
Há café?
Proibido.
Livros, vende?
Simplesmente proibido.
Sabe, eles não gostam de livros. Posso comprar um aquecedor para aquecer os
tomates. Posso comprar uma torradeira para magoar o pão com o calor; já
imaginaram o sofrimento de uma fatia de pão, quando está prisioneira numa torradeira?
Um terror, meu amigo, um derradeiro terror.
A cidade fervilha, o
restaurante está encerrado, férias, dizem eles, mas desconfio que nunca mais
abrirá; viva a literatura.
Visito uma loja de
velharias, pequenos objectos de adorno que servem para me recordar que ainda
ontem, pela calada da noite, uma livraria foi assaltada; roubaram todos os
livros de poesia.
Tem café?
Proibido.
Vendem livros?
É proibido.
E, meus senhores. Apenas
um imbecil é capaz de proibir a venda de livros.
Podem comprar um
aquecedor para aquecer os tomates. Pois podemos.
Vivam os tomates.
Vivam.
Hoje há sardinha assada,
batata cozida e pimentos.
Assim seja.
Proibido.
Proibido, meus senhores. Tudo
é proibido.
Tragam as espingardas de
papel e os lenços de metal. Tragam as janelas do presídio e o mar que está
acantonado junto ao entardecer. Tragam os livros de poesia; os canalhas odeiam
poesia.
Proibido.
O mar?
Sabe-se lá, meu amor.
Francisco Luís Fontinha,
Alijó 09/02/2021