Havia uma lanterna que basicamente nos servia para...
Afugentar as mentiras, minhas?
Sim, embriago o Artur encostado ao balcão de mármores
com um livro em granito onde algumas palavras brincavam às escondidas,
“Aqui Jaz Artur Prior”, e nada mais do que isso,
Mentiras que eu entendo, que eu descubro e fico
calado, cabisbaixo, envenenado pelas árvores com as pequenas folhas
comestíveis, e bebíamos, e fazíamos como se de dois corpos suspensos na
madrugada se tratasse, e não o éramos, porque há muito que deixamos de ser
corpos, hoje somos caules brincalhões, balões de naftalina,
Porquê, Artur?
Não sei, sei... meu querido...
Porquê, quê?
Sabíamo-lo,
E não fizemos nada para terminar o sofrimento dele,
Havia uma lanterna que basicamente nos servia para...
Afugentar as mentiras, minhas? E devíamos estar
loucos, tu, e eu, porque de nada havia para ancorar ao porto de embarque, perdi
a âncora, abandonei as cordas de nylon, e travesti-me de petroleiro
desgovernado, só, felizmente...
Só?
As gélidas escadas de sal dormiam abraçadas aos
suspiros da fonte da Gricha e eu achava normal não existirem pássaros durante
os sonos nocturnos que passava à janela a contabilizar os automóveis friorentos
que desciam a calçada de luz dos candeeiros enferrujados que iluminavam os
vultos esquisitos, os vultos de pedra, simples moças a entrarem em casa de
madrugada, congelados os tentáculos de cobre que reluziam e brilhavam debaixo
das estrelas de cetim, a nossa casa não tinha vidros, alguns estavam vivos,
outros, outros já tinham partido para outros destinos, e a porta de entrada
ficava encerrada durante a noite apenas com um cordel que pela parte de dentro
era unido por dois pregos, também eles, velhos
Eu
Eu achava normal os vidros das janelas estarem
estilhaçados, alguns estavam vivos, outros, outros já tinham partido para
outros destinos, outros já tinham fugido para outras direcções, como quem entra
na cidade e perante a placa com a inscrição “outras direcções” ele fica sem
saber como chegar ao segundo andar porque as velhas, porque as escadas em
madeira terminaram a validade, rangem, têm cãibras nas pernas suspensas nos
pinos de aço como o reumatismo felizardo que cintilavam nas paredes de gesso
com rugas de vidro, pinos de aço, ele fica sem saber o que fazer
Eu também,
Outros já tinham partido para outros destinos, e a
porta de entrada ficava encerrada durante a noite apenas com um cordel que pela
parte de dentro era unido por dois pregos, também eles, velhos, também eles,
caducos, também
Não tínhamos água e só, eu só, e só da velha Gricha
jorrava a glicerina fresca com o diabo no rabo ao ditado corrigido pela senhora
professora com a bata branca e a menina dos três olhinhos poisada na
secretária, olhava-nos, sorria-nos, gostava de nós a gaja
Também eu,
Também eu gostava da gaja que subia a calçada de
madrugada, e juro, não era senhora casada nem a menina dos três olhinhos, mas
tinha um corpo esculpido num pedaço de granito que eu tentei copiar e desenhar
na parede da sala, não, na parede do quarto, não, na parede da cozinha, não
Só tínhamos um compartimento amplo, enorme, com
bolinhas coloridos ao bolor que descaiam do tecto como se fossem dois mamilos
acabados de nascer, e balões, e serpentinas, e perguntavam-me
Vivem num circo? Respondia-lhes que não, Não vivo num
circo, mas a nossa vida é um espectáculo colorido, tínhamos uma casa com muitas
janelas e poucos vidros, tínhamos uma sanita velhíssima que quase sempre estava
com gripe e tínhamos que a levar às urgências do hospital, no tempo que ainda
havia
Hospital?
Não sei se amanhã, cedo, recordarei os teus olhos de
hoje, amanhã, não sei, se recordarei, cedo, os lábios teus que percorreram o
meu corpo invisível, como uma cortina de fogo, dentro de um copo com água, um
cilindro, o cubo, não, sei talvez que não recordarei, porque não sei o significado
de recordação, perdi o sentido de navegação, e hoje, como ontem, sou um pedaço
de madeira desgovernada sobre os teus ombros penumbrosos e frios que o Outono
provoca em ti com as canções de pequenos silêncios, sei, ou será que me
esqueci? Como seriam os teus lábios, de cedro, antes de mergulharem em mim,
coitado, um transeunte doente, e enfeitiçado, mal-educado, ausentado
não
Cedo, amanhã, preguiçarei como um marinheiro à procura
de um corpo homem para poisar as desejosas insónias que vivem nos homens com
cheiro a oceano, o sal entrava em nós, e vivíamos como dois camarotes
partilhados mutuamente como duas pequenas divisões de uma casa flutuante,
germinados, os nossos corpos de vapor nas asas de uma triste gaivota, o covil
como nunca o tínhamos visto, não, sei se amanhã, cedo, alguma coisa em mim para
recordar, mas o quê, concretamente?
nuvens? pratos com sopa mais parecendo copos com água?
ou... as tuas mãos sobre mim, como uma caneta de tinta permanente, sempre e
sempre e nada, ausente de ti porque eu desconhecia as cavernas que o medo
provocava em nós, porque tu sentias o meu peso como simples gramas de poeira
depois de o vento desaparecer entre candeeiro a petróleo e bananeiras de
regresso a S. Pedro do Sul, havia muitas, nas termas, uma fonte, circular,
cheirava a enxofre, borbulhavam pequenas partículas de sémen, e tu, sempre o
tu, sentíamo-nos felizes como dois pássaros voando entre Carvalhais e Favarrel,
e nunca vi as tuas mãos entranharem-se-lhes no tronco resinoso do pequeno
pinheiro manso da tapada do meu avô, chegávamos lá, e sempre lá, ouvíamos os
sussurros expeditos das vozes enlatadas do atum e da sardinha, até que me
pedias para um dia
Juras que um dia me recordarás?
(Ficção)
Francisco Luís Fontinha
in “Noites de Mim”
segunda-feira, 1 de Fevereiro de
2016