segunda-feira, 22 de abril de 2013

A mão inclinada

foto: A&M ART and Photos

O cubo corporal suspenso numa árvore de papel, a pele mistura-se dentro da sombra desenhada com as lâminas de barbear, escrevo folhetos, folhetins, panfletos, em promoção conseguia-se uns descontos confortáveis, três panfletos por cinco contos, barato, fazíamos sempre uma excelente compra, e se algo corresse mal, claro, sempre por culpa dos ciganos – A quem compraste, pá? - claro, a um cigano que andava a passear pela rua – Qual rua? - uma, qualquer, uma rua sem asas, em voos de liberdade condicionada, uma corrente de aço prendia-nos aos ventos do deserto, os barcos, havia, folhas de alumínio, tão grandes, grandes, enormesss, do tamanho da noite
(sem estrelas, e faço-o propositadamente para que os corpos mergulhados no cubo invisível, a carne embalada no berço das poucas coisas possíveis e imaginárias, ripas de madeira, sem pintura, quatro pregos, pregos em aço, não dos outros, em carne e osso, na moldura a fotografia dos teus olhos, apenas, negros, negros olhos, penumbra de ti quando descem as calçadas de Lisboa pelo teu corpo travestido, e antes de caírem no pavimento abriam-se-lhe das cabeças ocas com pilares de areia, o cubo, e o rio...)
Do tamanho do homem com braços de noite, com pernas de noite, com um esqueleto de noite, abraçados, apaixonados, dentro, fora, encarcerados, com grades de madeira, lá fora as crianças da escola pintavam o mar no tronco das árvores, e cá dentro, havia entre nós uma mistura fria, havia um líquido esbranquiçado que nos untava, oleava, e depois, depois vinham os dias, primos das calçadas de Lisboa, primeiro a Ajuda, depois uma outra qualquer, não interessa, e depois via-se o rio a sair da algibeira de uma mulher com cabelo preto, olhos castanhos e corpo esguio, como uma enguia saltitando as margens junto a Cais do Sodré – Amor, estou quase a chegar – e
(sem estrelas, e faço-o propositadamente para que os corpos mergulhados no cubo invisível, a carne embalada no berço das poucas coisas possíveis e imaginárias, ripas de madeira, sem pintura, quatro pregos, - Sim, meu amor, sim! - o inacreditável parvalhão esperava pacientemente pelo reencontro das fotografias de Lisboa com as fotografias de um local esquisito, distante, e quando lhe perguntavam – Onde fica isto? - ele apenas encolhia os ombros, silenciava-se e acreditava que ela um dia regressaria do vazio sonho sem almofadas, subia-se uma escada íngreme, apertadinha, e quando chegávamos ao sótão, a senhora teia de aranha – Noites de insónia, terceiro andar frente – e de mão dada, descíamos, descíamos, e acabávamos por ultrapassarmos as paredes velhas em gesso e quando acordávamos, estávamos num jardim público, e junto a nós o nicho de Nossa Senhora de Fátima, perguntavas-me – Amor, o que fazemos aqui – e como sempre, não respondi, ou não sabia responder)
E uma mão inclinada, provavelmente com uma inclinação de dezassete graus, e pacientemente, poisava no meu rosto,
(extraias-me a raiz quadrada, calculavas-me a integral tripla do meu coração, depois, traçavas aleatoriamente rectas sobre o meu corpo, até que
“O cubo corporal suspenso numa árvore de papel, a pele mistura-se dentro da sombra desenhada com as lâminas de barbear, escrevo folhetos, folhetins, panfletos, em promoção conseguia-se uns descontos confortáveis, três panfletos por cinco contos, barato, fazíamos sempre uma excelente compra, e se algo corresse mal, claro, sempre por culpa dos ciganos – A quem compraste, pá? - claro, a um cigano que andava a passear pela rua – Qual rua? - uma, qualquer, uma rua sem asas, em voos de liberdade condicionada”
até que nos deitávamos sobre um cobertor almofadado, um tanto preguiçoso, e em conjunto, resolvíamos todos os problemas de matrizes, e em conjunto calculávamos a massa dos corpos em repouso, pegávamos no peso quase sempre nos esquecíamos da força gravítica, e eu poisava em silêncio a minha mão sobre os teus castanhos olhos e – Pede um desejo! - ao que tu respondias – Quero-te a ti! - e claro, nem a raiz quadrada, nem as matrizes, e claro, nem as integrais triplas, faziam sentido nas nossas vidas)
E uma mão inclinada, provavelmente com uma inclinação de dezassete graus, e pacientemente, poisava no meu rosto, era a tua dúctil mão com sabor a cereja embrulhada em papal de chocolate, havia palavras no interior do papel
(eu amar-te-ei sempre)
E com o tempo,
Há muito tempo,
O papel derreteu com as temperaturas elevadas da cidade, e as palavras, elas, diluíram-se com a chuva miúda do último Outono ausentado do cubo empanturrado de corpos, nus, brancos, liquefeitos... como a terra molhada depois das chuvas, e o capim balançava dentro de um pedaço de saudade...

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

domingo, 21 de abril de 2013

A cidade de Deus

foto: A&M ART and Photos

Esta é a minha cidade inventada por Deus
que me esconde quando acordam as tempestades
e o mar sobe até ao quinto andar
e há uma porta em forma de cacimbo
com o cheiro a capim doce e a terra húmida,

Há em mim esta cidade
preenchida nas telas brancas
com espaços vazios
sombrias depois dos alicerces teus cabelos
mergulharem na penumbra do feitiço da noite,

Procuro a saída e percebo que nesta cidade
na rua onde habito desta cidade
não tem portas de emergência
não tem escadas de incêndio...
nem as palavras poéticas das melodias dos cigarros em festa,

Esta cidade é uma “merda” de cidade inventada
tem muitas portas
tem muitas janelas
mas nenhuma delas
me dão acesso ao amor dos jardins junto ao rio,

Nesta cidade perdido ando como um vampiro
ou um ramo de árvore depois do pequeno-almoço
quando a sorte desaparece e as pequenas lâmpadas do estômago fingem-se apagadas
esta cidade com esqueleto de vidro e aço e granito
e pingos de silêncio dos suicídios das gaivotas cinzentas...

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

Quadradinhos de vidro

foto: A&M ART and Photos

Janelas, quadradinhos de vidro, sobre a rua míngua, deserta, húmida, janelas com flores e cubos de chocolate, janelas de solidão que pacientemente, esperam, que desça a noite sobre os automóveis abandonados, tristes, alegres, cansados, janelas sem vidros, buracos, vazios, vácuo, janelas em frenesim comendo amêndoas e bebendo vinho,
(janelas com grandes de ferro, havia um quintal com árvores e arbustos, havia pássaros, abríamos as janelas, sentíamos os cheiros, os sons, os batimentos sôfregos dos pássaros envenenados com drageias que faziam-nos dormir sem sonhar, janelas com grades, abertas, caía a chuva sobre os primeiros dias de Maio, e alguém em círculos, no longínquo corredor da morte – Tem horas? - e eu, timidamente, com medo, desaperto a bracelete do meu relógio de pulso, tiro-o cuidadosamente e ofereço-lho, dizendo-lhe
Que seja a última vez que me perguntas as horas,
e até hoje nunca mais usei relógio, confesso que a princípio não foi fácil, mas depois, depois habituei-me a ser um dos tantos desorientados, que se regula pelo sol, e quando não há sol, vivo normalmente como vivia, olhando para as janelas, verificando se faltam vidros, procuro as formas, os feitios, os sentidos, e às vezes, perco-me, perco-me no centro das rochas como as grainhas esquecidas sobre os muros de xisto que acompanham a estrade encurvada até ao cais onde partem, chegam, não um, não dois, não barcos, mas mais do que cinco autocarros da carreira com destino indefinido, onde numa placa está escrito “Serviço Ocasional”, e até hoje
percebi,
Que seja a última vez que me perguntas as horas)
Janelas quadradas, janelas triangulares, janelas rectangulares, janelas circulares, e simples janelas como olhos de diamante, imagens, pensamentos, sonhos e omissões, janelas, janelas
(janelas sem corações)
Janelas delas, e deles, abraços e janelas, e prazeres, e janelas que procuram uma cidade para viver, e uma rua para brincar, janelas com seios e púbis, janelas em gemidos quando acorda o dia... e o raio do cortinado ficou preso no fecho éclair da claridade que se abate sobre a mesa-de-cabeceira, - Andas tão estranho, meu querido! - anda, anda
(é por culpa das janelas)
Anda ele e ando eu, andamos, e tínhamos um quarto que felizmente, interiormente, não tinha janela, não havia imagens, nem sonhos, nem brincadeiras de miúdos, um quarto onde resolvemos desenhar e pintar
(janela)
E um crucifixo, que por ora está só, sem ninguém, mas logo que possível, mas logo que seque a tinta e nos seja possível abrir a janela, talvez, alguém para preencher o vazio do crucifixo com cheiro a verniz,
(culpa das janelas invisíveis, janelas que constroem a solidão a partir de pedaços de sombra, e dos autocarros da carreira que antes chamavam-lhes machimbombos, e hoje, apenas imagens, fotografias aprisionadas dentro de compartimentos sem janelas, buracos, vazios, infelizes, entradas para o infinito céu de compartimentos com grades de insónia, e sobre a dita mesa-de-cabeceira o fecho éclair liberto do cortinado, a liberdade, de ter uma janelas, com vidros, sem vidros, apenas um vazio, para olhar, pensar, sofrer, ou sonhar..., ou claro, simplesmente... para te sentares)
O cheiro da madeira, e o hálito de vinho que o homem da esquina encarnada usava e às vezes sobejava, o silêncio de um cheiro, a saudade de uma janela com mil sabores, com mil e novecentos caracteres, com um espaço e meio, cerca de trinta páginas, que depois do vento, foram-se como foram os vidros, as teias de aranha e toda a mobília, e ficaste tu, a construir a cidade, trouxeste as árvores, fizeste os pássaros, e colocaste, cuidadosamente... todos os vidros das janelas em paixões de areia molhada, que o mar deixa ficar no pavimento ensonado dos fins de tarde
(percebi)
Antes de acordar a noite.

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

Loucas imagens da fina areia mergulhar

foto: A&M ART and Photos

Estranhas imagens que o corpo absorve
depois de regressar a tempestade
e a fina areia mergulhar
nas profundezas mãos de sabão,

Estávamos loucos quando imaginámos sombras nas janelas do amanhecer
e via-se perfeitamente um cortinado de amargura
rompido e ensanguentado
desértico do amor apodrecido,

Descia a noite
e as imagens negras voltavam às tuas mãos
havia uma ressonância de cigarros
embainhados debaixo do tecto das gaivotas que diziam-se perdidamente apaixonadas,

Perdidamente
perdidas entre vãos de escadas
e portas emagrecidas
… portas com corações de oiro e olhos madrugadas.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

sábado, 20 de abril de 2013

Invento a tua mão

foto: A&M ART and Photos

Procuro um trilho seguro entre duas linhas paralelas, do aço longitudinal poisa o nevoeiro como a poeira fina das lágrimas do meu rosto, pego na minha mão e coloco-a transversalmente na face rosada, escura, sou absorvida pela neblina, e metros depois, desapareço entre as tábuas apodrecidas que abraçam a linha férrea que me irá transportar até ao “O Cais das Merendas – Lídia Jorge”, li-o ainda eu era adolescente e apaixonei-me pelas palavras dela, pelas histórias, e foi há tanto tempo, tempo demais, o suficiente para chamar a “Clarissa – Érico Veríssimo” e afagar-lhe o cabelo com os meus dedos de insónia, finos, compridos, leves como o vento, cinzentos, e até às vezes, encarnados como os botões de rosa do jardim público com bancos em ripas de madeira, finas, e em letra de imprensa “Cuidado – Pintado de Fresco”, e como eu distraidamente, como tu, sentámos-nos, demos as mãos, e quando nos erguemos, a minha saia tinha as marcas das ripas e as tuas calças de ganga
(três sombras como uma grade de sofrimento, três ripas de madeira que aprisionavam invisivelmente as minhas nádegas de areia)
Três linhas rectas, carris, sem saída, e sobre mim uma fina camada de neblina que não me deixava ver os carris, começa a descer a noite, escrevia o teu nome na minha boca, e tu, não vinhas, e tu, talvez perdido entre ruas e edifícios defeituosos, com muitas janelas e vidros partidos, e quando acordava o sol, ouviam-se-lhes as saudades da areia branca,
(três sonhos dentro de três desejos que esperavam por três tristes tigres, e à nossa volta, três ruas, apunhaladas por três homens com uma cabeça de marfim, e depois, viam-se três, também elas tristes, três lindas flores com pétalas em vogal de incenso e sílabas com molho de palavras voláteis dos dias engasgados nas bocas de três alegres, estes sim, alegres rapazolas vestidos com mantas embalsamadas pelo silêncio e pela pobreza, e triste, também, triste não é ser pobre, triste é ser ignorante e acreditar que tudo à sua volta gira em círculos de saliva, há um pequeno gaguejo sísmico, há um pequeno latido, um lamber de botas... e já está, a vida só é triste quando se é ignorante, e ser-se pobre não é dramático, ser-se pobre ou filho de pobres, não é vergonha, é um enorme orgulho, vergonha... é realmente ser-se ignorante, porque a única coisa que o dinheiro não compra é a vida, e a inteligência)
E nós sabíamos que as areias brancas estavam tão longe de nós, como estes carris, que quanto mais caminho sobre eles, mais compridos são, longínquos nas manhãs de Outono, entre poeiras e tinta acrílica sobre o olhar da linda Mariana, e nós sabíamos que apenas os perfumes que sobejavam das clareiras em bolor conseguiriam sobreviver à saudade...
(três lindos carris em aço procuram esposa, máximo sigilo)
E procuro-me no trilho seguro entre duas linhas paralelas, do aço longitudinal poisa o nevoeiro como a poeira fina das lágrimas do meu rosto, pego na minha mão e coloco-a transversalmente na face rosada, escura, sou absorvida pela neblina, e metros depois, desapareço entre as tábuas apodrecidas que abraçam a linha férrea que me irá transportar até aos teus braços,
(onde andarás agora...!)
E sussurradamente invento a tua mão dentro da minha mão...

(não revisto, quase ficção)
@Francisco Luís Fontinha

Ficcionado eu de ti marinheiro

foto: A&M ART and Photos

Ficcionado eu na tua mão sideral em pedaços imaginários
de cristal e finos objectos de luz,
há uma lareira que se extinguiu dentro do teu peito de caverna inventada
pelas palavras de uma árvore perdida na montanha,
há ruas que nunca tiveram saída,
tu sabias,
e nelas continuaste a caminhar
como... se passeasses sobre o silêncio mar,

Ficcionado eu nos teus seios de pano
que serviram para embrulhar luares e noites de prazer,
há nessas mesmas ruas,
aquelas que nunca tiveram saída e tu caminhavas,
relógios de pulso e canções de amargo amor,
e tu sabias
que eu era uma simples sombra
como um copo moribundo na mão de uma mulher pintada de negro,

Eras a noite
e aparecias-me quando as luzes da insónia cessavam,
morriam,
eras a noite que sempre tive medo
e cobria-me com o cobertor cinzento...
para que não desses por mim,
ou descobrisses que o meu esqueleto em vez de ossos
tinha ficcionado uma pomba branca cansada de voar.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha


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