sexta-feira, 22 de março de 2013

Flores de Inferno

Quem sou eu, senhor ANORMAL?
À segunda foi de vez, e quando todos esperavam que ele fugisse para não regressar mais, ele desce a montanha, devagar como todos os passos mórbidos de homens cansados, da água vieram as cintilações que abraçavam as candeias de alumínio que se suspendiam na chaminé, e nas cozinhas, as doces âncoras do vento que aprisionavam os esquifes ao pavimento húmido da laje submersa em lágrimas de saudade e flores de inferno, na lareira um cisco de oliveira derretia-se como açúcar embrulhado em alguidares palavras, que só ele, o senhor ANORMAL conseguia distinguir nas horas de desespero,
Quando batiam à porta, escondia-se e fingia-se de invisível,
(Diz-lhes que eu não estou),
Sim?
É para conversarmos com o senhor ANORMAL..., ah..., lamento, mas ele disse-me para lhes dizer que ele não estava hoje, ouvia os risos em fotocópias de livros de poesia, e sentia-os descerem em passos apressados a dura calçada de areia até desaparecerem nas luzes do cemitério,
Sim, eu digo-lhes que o senhor me mandou dizer que hoje não estava em casa, saiu, qualquer coisa relacionada com má disposição, Olha
Sim?
Diz-lhes que eu morri anteontem e que fui a enterrar hoje,
Olhe que eu digo-lhes isso, padrinho,
Diz Diz,
Então quando está, perguntaram-me eles?
Ora... foi a enterrar hoje, talvez daqui a cinco dias, sim, cinco dias,
E eu ia, procurava-te, imaginava-te sentada num banco de granito, circular, serrado em duas simples metades, deixavas o corpo florir, começavas por esta altura, quando regressam os pássaros, as abelhas, e o sol, gostas de Sol?
Não percebo, padrinho, nunca percebi porque se esconde de mim,
E do Céu um arco de silêncio pindericamente mal vestido, como eu, padrinho, entre moinhos e lençóis de água, e porque foges de mim, padrinho?
Gosto de si, padrinho,
E poisava-me a mão sobre os meus débeis joelhos, não falava, nada dizia, e talvez escrevesse dentro dele
Eu também, minha querida, eu também..., mas diz-lhes que eu não estou,
E eu, esperava-o, sentava-me sobre a meia-lua do prazer, pegava num livros, lia qualquer coisa, e fechava-o, e recordava o cisco de oliveira cilindrado dentro de uma lareira de prata numa cozinha de aldeia, cansei-me, cansei-me
De ti,
Uma mala de chapa uivava junto aos meus pés, lá dentro, apenas papeis e livros, e claro, senhor anormal, os livros são constituídos por folhas de papel, logo
Os livros também são papeis,
Então trouxeste de tão longe, uma mala
Sim?
Uma mala de chapa e recheada com papeis,
De ti,
Porquê padrinho? Porque tens medo de mim?
E a meia-lua desesperadamente voava sobre os desvairados plátanos do pensamento, havia lápis de cor e folhas de cartolina, sobre os meus joelhos, a mão dele, sentia-a, como mais tarde senti a mão da solidão no interior do meu púbis, como mais tarde senti nas minhas coxas, sim padrinho
A sua suave voz melódica e poética que Deus criou, como as nuvens e os infernos das flores em putrefacção, corpos de carne misturados em bocas de mar que as árvores tanto invejam, Percebe-me, padrinho?
Não, não consigo imagina-te...
Sentada neste sofá à espera que você regresse?
E se eu não regressar?
Tenho-a, todas na minha mão, tenho-a quando lhes menti e lhes disse que o senhor tinha morrido, não morreu e hoje espero-o, sabe?
Não, minha querida,
Apetecia-me recordar a sua mão sobre os meus débeis joelhos, em marés por viver e traineiras de amar, amá-lo como se amam as flores, amá-lo como se amam os homens e as mulheres, e o sol
Gostas de Sol?
Sim padrinho, adoro o sol.

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

quinta-feira, 21 de março de 2013

Perfume de Primavera

foto de: A&M ART and Photos

Inventaste a musicalidade do teu corpo
propositadamente
porque sabes que eu não percebo de música,

Inventaste as palavras difíceis
porque sabes que eu não sei o que são palavras difíceis
e tão pouco as sei prenunciar,

Inventaste o amor
acorrentado
a um deserto cais com flores de papel,

Inventaste as camas de pensão
e as janelas com vista para o mar
porque sabes que eu nunca vi o mar,

Inventaste-me quando existiam bancos de jardim
com ripas de madeira
onde alguém escreveu “Cuidado – Pintado de Fresco”,

E a tua saia transformou-se em listras vermelhas
com pétalas de morango
e beijos de açúcar,

Inventaste as minhas mãos
que quando acariciavam o teu corpo
desenhavam-lhe uma pauta musical com perfume de Primavera.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

O caçador de Grilos

Apetecia-me caçar grilos, acordou a bela Primavera, as palavras são grátis, apetecia-me, correr sobre os carris inanimados, moribundos e doentes, ou
Cansados,
Estás cansado meu querido?
Sim, talvez, sou capaz,
Cansado de caçar grilos onde à partida, nãos os há, emigraram para outra planície, partiram de mochila às costas, ombros em punho, Oiço-a (Ana Drago a falar para o boneco), porque os grilos, fugiram, emigraram, oiço na Antena 3 qualquer coisa relacionado com Filosofia, deve ser o tema da Prova Oral, mas mal oiço a palavra Filosofia
Doente, sabes o que tenho, estou doente,
Vou caçar grilos, tanto me faz que sejam do António, do Zé do Do ZIZIARINHO, interessa-vos o dono do grilo?
E claro que ela tem razão, gosto de a ouvir, mas neste momento estou mais interessado na caça voraz aos grilos dos terrenos baldios, lembro-me
Ainda te lembras, meu querido?
Gri Gri Gri tua casa não é aqui, e eu, parvalhão, de palhinha na mão a masturbar um buraco, outro parvalhão dizia-nos
Se urinarmos para o buraco ele sai, diga-se, diga-se o referido grilo, mas
Não saía, o gajo só não saía como certamente não estava lá, ela tem razão no que diz e eu gosto de a ouvir, e já na altura os grilos eram teimosos, mentirosos, fingidos, e já na altura
Meu meu querido, amas-me?
Claro que sim meu grilinhos, claro que sim,
Perdão?
(ah... o grilo não é do António, ah... o grilo não é do Zé, ah... então o grilo é do ZIZIARINHO?)
Pedimos
Perdão
Pelo sucedido,
Dentro de momentos voltamos à caça dos famosíssimos grilinhos das esparsas ruas com legumes e fruta da época, valeu-nos o regresso do outro, que com a sua voz melódica, todos, mas todos
Os grilos saíram da toca,
Ah,
Depois vinha o meu grande amigos dos Sorrisos, de mãos nos bolsos, olhava-me e em termos visuais quase nulos, dizia-nos
Não podem gritar nem ser agressivos com a palhinha no buraco, assusta-os, e a esta hora
Que tem a hora, pá?
Estão a sonhar,
A sonhar? Mas ouve lá oh risinhos, Os grilos sonham?
Claro que sim, os grilos, os pássaros, as árvores e as couves e os rios
E já agora, as pedras, não?
Claro que sim, também sonham,
Apetecia-me caçar grilos, acordou a bela Primavera, as palavras são grátis, apetecia-me, correr sobre os carris inanimados, moribundos e doentes, ou ouvir-lhe todos os discursos, ou
Pedimos perdão pelo sucedido, o texto segue dentro de momentos,
(ah... o grilo não é do António, ah... o grilo não é do Zé, ah... então o grilo é do ZIZIARINHO?)
Não, não venhas, não, não urines para o buraco
Parvalhões
Gri Gri Gri tua casa não é aqui, e claro que sim, sonham, como nós, e vós, ou
Pedimos perdão pelo sucedido, o texto segue dentro de momentos, os carris seguem dentro de momentos, alguns nunca mais seguirão porque uns parvalhões quaisquer tiraram-os, venderam-os, sucata, palavras malvadas nas algibeiras clandestinas da saudade, porcarias, estradas entre a noite e os queridos apaixonados pelos mais belos poemas de amor
Gostam de Amor?
Simmmmm...
E hoje,
Hoje?
Deixaram de passar comboios onde antigamente havia buracos, nesses buracos viviam grilos, esses grilos cantavam, e de mãos da algibeira regressava o meu grande amigo dos sorrisos, olhava-me, e dizia-me com se estivesse a escrever apaixonados lábios na seara de trigo
E respeitosamente,
Dizia-me
Não podem gritar nem ser agressivos com a palhinha no buraco, assusta-os, e a esta hora
Que tem a hora, pá?
Estão a sonhar,
A sonhar? Mas ouve lá oh risinhos, Os grilos sonham?
Claro que sim, os grilos, os pássaros, as árvores e as couves e os rios
E já agora, as pedras, não?
Claro que sim, também sonham,...

(ficção não revisto)
Francisco Luís Fontinha

Paixões de granito

A&M ART and Photos


Misturavas-te nos gomos de laranja das noites ensonadas em veneno Primaveril
dos laços de cristal adornavam-te o fino pescoço de arame invisível
havia sombras em ti
que só a minha boca saboreava
como a acorrentada imagem da madrugada antes de acordar,

Havia uma língua de prata
na boca teu sargaço que o mar engole
migalhas de mel e rebuçados de palavras
emergiam da tua leve mão solúvel na areia deserta da insónia
que os olhos negros procuravam nas gaivotas do engano,

Dizias-te flor eternamente perdida nas minhas loucas palavras
e mesmo assim
perdi-te sem perceber que nunca exististe
e que da chuva quando caías
desfazias-te em narcisos assustados,

Murmuravas nunca mais o meu nome
das minhas cansadas árvores sem palavras
e nada
nada que o mar não me dissesse
ou avisasse,

Nada parecendo felicidade
das janelas do pequeno abismo
são de ti as argolas dos pequenos gomos de laranja
que uma árvore me ofereceu
e eu e eu comia-as como se comem as grandes tardes sem literatura,

Quando uma lareira de vidro
vomita as chamas insensíveis das paixões de granito
que tu me ofereces invisivelmente
nas noites construídas de solidão
e miudezas no desprezo quando me cruzo no teu caminho enlatado,

O azedume adormecido do fruto proibido
e como eu precisava de roubar-te um sorriso
um olhar
uma sombra apenas de ti
sobre as pedras da calçada.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

quarta-feira, 20 de março de 2013

E havia

Havia o corredor de silêncio quando ela se vestia de palavras e caminhava, corria, caminhava, corria até que aos poucos, devagarinho, as luzes suspensas no tecto falso, ensurdeciam, enlouqueciam, e do vermelho abrupto sussurro das transversais linhas com poemas de areia, voavam, voavam até desaparecerem no final do corredor, a mulher, desesperava-se com a lentidão dos relógios e dos calendários, os dias tinham parado, e as horas e os minutos e os segundos,
Enlouqueciam como as lâmpadas de halogênio que vieram de regresso da plataforma número três com carris de xisto, socalcos mergulhavam na sombra do Douro, homens e mulheres, comendo sandes mal passadas, pedaços de pão, chouriço, e claro, vinho, com a água que Deus envia de vez em quando, e por incrível que pareça, misturam-se, abraçam-se
Como dois amantes, loucamente entrelaçados, sós, eles, tal com Deus os desenhou nas ardósias húmidas das tardes sem Primavera, lá dentro, o palheiro vazio, uma cama nua e despida de preconceito, mistura-se-lhe nas pequenas mãos de linho, o algodão transpira na camisa adquirida num estilista famoso que o cigano André vendia a cinco Euros, e num dos cantos do palheiro, pequenas palhinhas de desejo a iluminarem os espaço prestes a ser inaugurado entre dois sexos vazios, dois sexos que partilham cada milímetro de sombra que desce do tecto com ripas de madeira, eles amam-se e misturam-se-lhe das grandes asas do ciúme
Adeus meu querido,
Amo-te,
E havia o corredor, sem portas nem janelas, apenas com um tecto falso, baixo, a luz fingia-se viva quando todos sabíamos que as lâmpadas de halogênio estavam mortas, como mortas estavam as frases inscritas nas paredes de gesso, e havia
Alegria muita alegria, felizes todas e elas, felizes as flores e eles, felizes, felizes, não felizes,
Aposto tudo em
Não felizes,
Mais ninguém aposta? Vou lançar os dados, e...
Ganhou
Ganhei, ganhei, não felizes, palpitava-me, sabia-o como sempre soube desde que nasceu este pequeno monstro com braços de aços e esqueleto laminado a frio de uma liga de carbono e ferro, e às vezes, uma pequeno dor de coluna, que quando saia de casa e se queixava, ouvia a dona Amélia
Ai vizinho, esse chiadouro nas cruzes, até parecem dobradiças com insónias,
E
Não
Eram,
Qual insónia?
Sabes, meu querido? Não, como posso saber se não me disseste o que era,
Medo,
Tens medo, medo de quê?
Do amor, da paixão, e das loucas gaivotas quando devoram o mar durante a noite, enquanto dormimos, desculpa, enquanto eu durmo, tu nunca dormes, porque tu não existes, porque tu,
Sou um corredor do corredor de silêncio quando ela se vestia de palavras e caminhava, corria, caminhava, corria até que aos poucos, devagarinho, as luzes suspensas no tecto falso, ensurdeciam, enlouqueciam, e do vermelho abrupto sussurro das transversais linhas com poemas de areia, voavam, voavam até desaparecerem no final do corredor, a mulher, desesperava-se com a lentidão dos relógios e dos calendários, os dias tinham parado, e as horas e os minutos e os segundos, e eu, e ele, e todos os nossos móveis deixavam de fazer sentido, pareciam velhos, e não o eram, pareciam vermelhos, e eram azuis, tinham o Céu desenhado com estrelas de chumbo, e não tinham nada, afinal não era o Céu, nem as estrelas, nem o chumbo, apenas a humidade no tecto devido às infiltrações do vizinho de cima, por baixo de nós vivia um casal de submarinos, também eles, velhos e sós, também eles, estátuas onde pássaros mal educados cagavam sobre as deles pobres cabeças de bronze
Nunca quis ser estátua,
Nem altar onde se ajoelhassem mulheres a rezarem, a pedirem-me coisas, e pergunto-me
O que teria um desgraçado de um desempregado para oferecer?
Por favor
Procurar outro santo,
Porque eu,
Desisto,
Porque eu
Não estou disponível para negociações, porque eu
Nada
Nunca,
Porque meu querido
AL Berto
E companhia limitada,
Se o Pacheco estivesse vivo
Di-lo-ia
Amigos, estamos todos fodidos e mal pagos.

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

terça-feira, 19 de março de 2013

Dar-te-ei um rio com ripas de madeira

A&M ART and Photos

 
As três árvores do sonho, morreram, deixaram sete sombras e duas teias de aranha, fumavas muito, repreendias-me sobre os malefícios do tabaco, e eu, prometia-te
Brevemente vou deixar,
Hoje, não fumo, e sinto-me envergonhado por nada ter para te prometer, não posso prometer-te o mar porque é impossível levar o mar até ti, não posso prometer-te flores, porque deixei de saber o que são flores, noites de geada, ou noite de lua cheia em plena Primavera, não posso, e não quero
Prometer-te o que não consigo dar-te,
Um rio, por exemplo, poderei eu um dia oferecer-te um rio só para ti, não, evidentemente que não, mas posso oferecer-te os cheiros que vivem no rio, ou
Um banco de jardim, onde te sentarás à minha espera, mesmo tu, sabendo, que nunca irei regressar, porque os mortos não regresso, e eu, lembras-te?
Morri quando caí na asneira de prometer-te o Céu com estrelas, com chuva, e ventos e tempestades, fiz-te promessas que nunca fui capaz de realizar, umas por falta de tempo, a melhor desculpa para todas as situações, outras
Por não ter dinheiro, emprego, vida estável, por preguiça
E deixei-te ficar sentada num banco de jardim, em ripas velhas, em busca das sombras, e duas teias de aranha, fumavas muito, repreendias-me sobre os malefícios do tabaco, e eu, prometia-te
Brevemente vou deixar,
E deixei que esperasses por mim quando devia ter-te dito para partires..., depois veio a bruma, a fina espuma, o silêncio, depois veio o caderno onde escrevíamos palavras, loucas, poucas às vezes, que iluminavam os teus olhos com uma luzinha em cada um, parecias um sol quando acabava de acordar, ainda na parte de esfregar as pálpebras, com os finos dedinhos que a lua emprestava, depois vinha o sono, o cair da tua cabeça sobre o meu ombro...
Brevemente vou deixar,
De sentar-me em bancos de jardim, principalmente aqueles em ripas de madeira, porque me fazem recordar os teus olhos, as flores, que confesso, não sei o que são, nunca soube, e prefiro não o saber, como tantas e tantas coisas que
Não sei
Não quero saber
Não me apetece,
Não sei, mas talvez um dia, quem sabe, me venha a sentar num banco de jardim com ripas de madeira, e talvez um dia, quem sabe, me ensinem o que são flores, noites estreladas, omeletes recheadas com pólen, talvez um dia, me ensinem, que o amor, às vezes, tal como o sono
Aparece sem darmos conta, outras, é difícil adormecer, mas o pior, é o silêncio quando nos sentamos num banco de jardim com ripas de madeira, espero-o, e ele não regressa, e eu, sentada, acreditando que tal como o sono
Ele vem, vai regressar a qualquer momento, acredito, e enquanto sentada, imagino-o a caminha em direcção a mim, vagarosamente, como sempre, debaixo do braço, um livro, nos lábios um cigarro, imagino-o, vejo-o, depois, sentar-se-á junto a mim, dar-me-á um beijo, e nervosamente me dirá
Desculpa, meu anjo, o transito estava infernal; Já leste o novo de José Saramago “A Estátua e a Pedra”? Trouxe-o para ti..., E penso sempre nele quando me sento num banco de jardim com ripas de madeira, e ele me diz
Meu anjo
Não sei, mas talvez um dia, quem sabe, me venha a sentar num banco de jardim com ripas de madeira, e talvez um dia, quem sabe, me ensinem o que são flores, noites estreladas, omeletes recheadas com pólen, talvez um dia, me ensinem, que o amor, às vezes, tal como o sono, e talvez um dia, meu anjo, talvez um dia te apaixones por mim, como a Primavera se apaixona pelas flores, que confesso-te
Não sei e nunca soube o que são,
O que são flores, meu anjo?

(ficção não revisto)
Francisco Luís Fontinha



Os carris de ontem

Para onde me levas? Se os teus braços são espessos, abertos, desertos, se os teus braços são como o vento que seguem estes pobres carris até ao fim do destino, sem mais caminho, deixarmos de caminhar, não
E há muito deixaram de circular, aqui
Os comboios de ontem,
Amanhã
E há amanhã fantasmas de aço já sem braços, já sem vento que nos levarão para as planícies de um rio sem dentes, um rio, deserto, fechado, encerrado, sem barcos, sem
Comboios para olhares, sem carros em direcção ao Grafanil, tudo, cessaram as lilases árvores pintadas nas brancas e finas pernas da menina do quintal ao lado, gostava dela, mas às vezes
Era chata, impertinente, embirrante, e eu, eu atirava-lhe com o meu chapelhudo (um boneco com vestidos que eu desenhava, que eu cosia nas solidões da tarde, um boneco que dormia comigo, e durante a noite me levava a passear para junto do mar), e ela, ela indiferente a ele, ela olhava-o, olhava-me, e dizia
Não tenho medo de ti,
Eu tinha, muito, e escondia-me junto ao tronco da mangueira do quintal, ela erguia-se, empoleirava-se sobre os arbustos e nada, nada, nada, nunca me encontrava, e eu
Via-a sobre os carris, sem comboios, desertos, e os teus braços são como o vento que seguem estes pobres carris até ao fim do destino, sem mais caminho, deixarmos de caminhar, não
Não esperes por mim, não, não faças de mim também, deixarás de perceber quando caminhavas, sobre os arbustos, e quase sempre, sempre que nunca me vias, choravas,
Sempre choravas quando não me encontravas, e saberias ao menos que eu também chorava enquanto não te encontrava? E saberias que o chapelhudo vestido apressadamente para andar no bolsinho do teu bibe, ele
Saudades
De mim,
Sabias?
Amanhã, os comboios de ontem, perceberás que hoje não comboios, hoje não andorinhas, e a Primavera está aí, amanhã, de mim, não esperes, não me lês porque tens vergonha das minhas palavras, dos meus azedos lábios, dos meus não beijos, e mesmo assim, subias aos arbustos, espreitavas-me... porque tínhamos veleiros imaginários estacionados entre os nossos quintais, ao centro, separavam-nos
Arbustos,
E montículos de areia com cor de chocolate, e no bolsinho do teu bibe
O teu chapelhudo, vestido, devidamente vestido, penteado, asseado, e o rapaz fazia-se de morto, encostava-se ao tronco da mangueira, e
Quase que nem respirava, e
Quase que nem se via,
E
Quase que terminava a Primavera, começava o Verão..., e ela sem acordar, e ela
Desaparecida,
Para onde me levas? Se os teus braços são espessos, abertos, desertos, se os teus braços são como o vento que seguem estes pobres carris até ao fim do destino, sem mais caminho, deixarmos de caminhar, não
Sim, talvez,
Tínhamos duas rectas de aço, paralelas, longínquas até ao infinito, e chegando lá, abraçadas elas, encontravam-se como se encontravam os amantes nos quartos de pensão, com quatro paredes, feias, frestas, uma janela quase parecendo um ponto de luz ao fundo do túnel, e no final
Amanhã,
No final uma parede de betão manipulada por um velho vestido de negro, amanhã, hoje, ontem, ontem tínhamos coisas, uma cama que rangia, sofria, gemia, uma cama com ar de ranhosa, e lábios beiçudos, amanhã
Não percebo,
Amanhã dizem-me que um hotel com cinco estrelas, duas nuvens e uma lua, ruiu, como as tendas de circo quando a tempestade é muita, quando o meu cão se revolta, e porque não se revoltam eles, porque apenas um rafeiro
Revoltado,
E os outros?
As ruas, os edifícios, as calçadas, os caixotes de lixo, o rio, as pontes e os homens..., porque não se revoltam eles?
E as outras?
Coisas pequenas, silêncios, sussurros de medo, grades invisíveis com vogais de sabão, prisões para os bons, e liberdade para as abelhas
Coitadinhas
Tenham pena delas,
Precisam, querem, desejam
Voar,
Andar
Caminhar..., até que os carris terminem
E
O precipício acordava nas mãos pequeninas da menina do bibe, que subia aos arbustos, que chorava enquanto o chamava, ele
Escondia-se
Como o chapelhudo,
No bolso do bibe dela.

(ficção não revisto)
Francisco Luís Fontinha