Não devias ser de pedra como as árvores do oceano
onde habita a Margarida, quando as noites não são noites, porque...
fartava-me de olhar a lua, e as estrelas, coisas, pontos de luz,
telhados em zinco com janelas de cartão, pregos, pregos entre ripas
e caricas, e um dia zarpou, e ao outro dia encontraram-na deitada nos
difíceis terrenos da aldeia, debaixo do rio, frio, as rochas
magoadas pelos desgostos silêncios de Agosto, sem gosto, gosto de ti
Imaginava-me dentro dela,
Gostavas de mim como um pedaço de aço, antes de
ser limado, desbastado com a rebarbadora das tuas mãos, não o
conseguiste e chamaste o escultor Migueis de José, com as suas
esbeltas ferramentas tentava ele moldar-me ao sabor dos teus lábios,
e eu
E ele cada vez mais indomável, selvagem, como as
aranhas em suicídios depois do almoço sagrado, sentadas na mesa do
senhor António A., ou
E eu,
Ela, debruçada na escada virada a sul, plantas
carnívoras alimentavam-se de pequenos papeis e folhas de alumínio,
não gostavam de palavras, deixavam-nas na beirinha da malga de
loiça, não gostavam de pão, e deixavam-no na superfície oleosa da
mesa de madeira que roubaram na barraca do vizinho das traseiras,
durante a noite, trouxeram a mesa e duas galinhas e um galo, e quatro
ovos
gosto de ti
Imaginava-me dentro dela,
E só desistíamos quando uma enxada de cansaço
batia no soalho, abríamos a janela do amor que tínhamos com vista
para o mar da paixão, vestias-te de gaivota e eu
E ele
Gosto de ti,
Ele vestia-se dela, enquanto ela se misturava nos
fumos vermelhos da encarnada melodia que se ouvia no rádio a pilhas,
quase rouco, fraquinho, e de pouca pulsação
Na urgência
Não deve ser grave, São as pilhas, pilhas
Anilhas
Nas pernas das meninas com saias de chita, e do
cabelo, cabelos de vento sobre uma palha em chapéu, e
perguntaram-lhe suavemente
Olha menino..., Quem manda aqui? E ele
Gosto de ti
Assim,
Que eu saiba... ninguém, que eu saiba mandamos
todos, todas, conforme vossemecê quiser e achar por melhor,
pertencemos ao povo, somos o povo, e dizem
Quem manda é o povo,
E dizem,
Assim,
Gosto de ti
E ela
Anilhas
Nas pernas das meninas com saias de chita, e do
cabelo, cabelos de vento sobre uma palha em chapéu, e
perguntaram-lhe suavemente, enquanto os lábios se colavam nas
pétalas azuis do buquê da Madame do terceiro direito, solteira e
sem filhos, disponível
E ela?
Assim, gosto de ti, Como quem atira uma munição
através de uma arma apontada ao nada, Assim..., desesperada, e
coitada
Coitada?
Dela, quando ele acorda e desaparece pelo espelho do
guarda-fato e só regressa três noites depois, vestido dela,
cansada, com as pernas recheadas de velhas varizes e foices martelos
estampados nas costas, percebiam-se-lhe os gritos de revolta, e nos
mamilos alguém lhe escrevera
LIBERDADE PARA O POVO!
Que sim, que ia visitar-me logo que possível, e
todas as noites relia as cartas dele, e todas as noites adormecia na
esperança que um dia, ele
Sim, sou eu
Eu?
Ele
E
Ela,
E nunca apareceu para me abraçar, apenas em
dispersos pedaços de papel, eu ia percebendo pelas palavras, que ele
E ela,
Nunca regressariam, nem três dias depois de
partirem como o outro que tardiamente, regressava, e aparecia-nos no
quarto, a cambalear, aos poucos, a atravessar o espelho do
guarda-fato, com janelas de cartão, pregos, pregos entre ripas e
caricas, e um dia zarpou, e ao outro dia encontraram-na deitada nos
difíceis terrenos da aldeia, debaixo do rio, frio, as rochas
magoadas pelos desgostos silêncios de Agosto, sem gosto, gosto de ti
Imaginava-me dentro dela.
(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
(escrito enquanto ouvia “The
Enlightement” The Ratazanas)