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Não tínhamos água e só, eu só, e só da velha
Gricha jorrava a glicerina fresca com o diabo no rabo ao ditado
corrigido pela senhora professora com a bata branca e a menina dos
três olhinhos poisada na secretária, olhava-nos, sorria-nos,
gostava de nós a gaja
Também eu,
Também eu gostava da gaja que subia a calçada de
madrugada, e juro, não era senhora casada nem a menina dos três
olhinhos, mas tinha um corpo esculpido num pedaço de granito que eu
tentei copiar e desenhar na parede da sala, não, na parede do
quarto, não, na parede da cozinha, não
Só tínhamos um compartimento amplo, enorme, com
bolinhas coloridos ao bolor que descaiam do tecto como se fossem dois
mamilos acabados de nascer, e balões, e serpentinas, e
perguntavam-me
Vivem num circo? Respondia-lhes que não, Não vivo
num circo, mas a nossa vida é um espectáculo colorido, tínhamos
uma casa com muitas janelas e poucos vidros, tínhamos uma sanita
velhíssima que quase sempre estava com gripe e tínhamos que a levar
às urgências do hospital, no tempo que ainda havia
Hospital?
Urgências nocturnas? E eu achava normal não
existirem pássaros durante os sonos nocturnos que passava à janela
a contabilizar os automóveis friorentos que desciam a calçada de
luz dos candeeiros enferrujados que iluminavam os vultos esquisitos,
os vultos de pedra cinzenta, no tempo que ainda havia
Gajas vestidas de sanita, sentava-me e adormecia, e
sonhava com papagaios de papel,
As gélidas escadas de sal dormiam abraçadas aos
suspiros da fonte da Gricha e eu achava normal não existirem
pássaros durante os sonos nocturnos, nem clarabóias, nem chaminés
com acesso ao céu, passava horas à janela, desenhava dentro da
cabeça imagens a preto e branco que só as fotografias sabiam
explicar, que só só da velha Gricha jorrava a glicerina fresca com
o diabo no rabo ao ditado corrigido pela senhora professora com a
bata branca e a menina dos três olhinhos poisada na secretária,
olhava-nos, sorria-nos, gostava de nós a gaja, que muitas vezes me
aqueceram as mãos de água-fresca como pasteis de feijão ou natas
com sabor a Sábados à tarde, como eu
Nunca percebi as mulheres suspensas nos calendários
do barbeiro,
Como eu
Nunca percebi as mulheres suspensas nos calendários
do sapateiro,
Como eu
Nunca percebi as gélidas escadas de sal que dormiam
abraçadas aos suspiros da fonte da Gricha e achava normal não
existirem pássaros durante os sonos nocturnos quando se esqueciam de
mim à janela a contabilizar os automóveis friorentos que desciam a
calçada de luz dos candeeiros enferrujados que iluminavam os vultos
esquisitos, os vultos de pedra, simples moças a entrarem em casa de
madrugada, congelados os tentáculos de cobre que reluziam e
brilhavam debaixo das estrelas de cetim, a nossa casa não tinha
vidros, alguns estavam vivos, outros, outros já tinham partido para
outros destinos, e a porta de entrada ficava encerrada durante a
noite apenas com um cordel que pela parte de dentro era unido por
dois pregos, também eles, velhos
Eu só
Eu acreditava que as meninas dos calendários do
barbeiro, eu
Eu só
Eu acreditava que as meninas dos calendários do
sapateiro, eu
Acreditava
Que eram anjos que voavam dentro dos cubos de
madeira que as tempestades de areia, depois de cair a tarde sobre
nós, deixavam cair como se fosse abelhas quando procuram o pólen
nas flores loucas, nas flores íngreme, ou nas gajas nocturnas com
braços de plástico, acreditava
Nos anjos da fonte da Gricha
Eu só.
(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó
14/01/2013