sábado, 5 de janeiro de 2013

Palavras frágeis


A todas as palavras frágeis
que desenhei na tua boca
quero-as de volta à minha mão deserta
morta

confusa porque o meu coração
sente o silêncio das rochas mergulhadas no mar
um peito arde e esfumaça-se na lareira da saudade
como todas as flores que viviam nos jardins da Babilónia

arderam morreram simplesmente subiram aos céus
e encontraram
morta
A todas as palavras frágeis

que desenhei na tua boca
a louca
porta
que se esconde nos teus abraços lilases

poucas
como as jangadas que se suicidam no lago da amoreira
troncos finos de árvores cansadas
tombam

incham
e em ais sobejam dos lábios em poesia
sentia que sinto ainda as palavras poucas
nas frágeis manhãs de Primavera.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó

As ardósias palavras dos teus seios

(   )

Sentia a tua mão nos meus seios, e ias descendo, descendo, sabia-te dentro do meu púbis de areia, e o mar começava a alimentar-se de mim, prenunciava grunhidos sons, e ao longe os ossos invisíveis dos peixes apaixonados, e vinham até nós os sons melódicos de um saxofone em solidão, era verão, era sábado, e a tarde começava a evaporar-se nas palavras que escrevíamos sobre os teus joelhos esqueléticos onde poisávamos um caderno com um capa dura, grossa, com desenhos de flores
Porquê
Tens de deixar de fumar,
E eu, eu pegava na tua mão débil, finíssima como os ramos de laranjeira que tínhamos no quintal em trás-os-montes, tão longe, a lareira, os livros, o sino da igreja quando dormíamos sossegadamente dentro dos lençóis de insónia, e tu
Eu sentia o sofrimento árduo dos teus lábios acabados de regressar, trazias nas mãos uma punhado de areia húmida, e na boca escondias o silêncio amor que a paixão sibilou nas carcaças apodrecidas dos peixes que viviam nos lençóis nossos que do jardim cheirava a incenso, alecrim, mirra, oiro falso, alquimia, líamos Proust, e sabíamos que
E deixei de fumar,
E sabíamos que todos os plátanos um dia, vinte e cinco anos depois, ruiriam, como ruíram os alicerces de todos os crucifixos de prata
Sentia a tua mão nos meus seios, e ias descendo, descendo, sabia-te dentro do meu púbis de areia, e o mar começava a alimentar-se de mim, prenunciava grunhidos sons, e ao longe os ossos invisíveis dos peixes apaixonados, dos poemas,
Morreram, como morrem todos os crucifixos de prata que entram na minha vida nocturna com sabor a mar e desejos de luas com pedaços de laranja, sonhos, e pipocas quando ligo a máquina das imagens, e apenas sombras, pretos, brancos, os riscos, os riscos crucifixos de prata que a melancolia escreve nas ardósias palavras dos teus seios.

(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Casa em ruínas


Sou uma casa em ruínas
simplificada que habita na garganta da avenida
sentindo a solidão das pálpebras doces que a noite deixa ficar
sou
sem portas
janelas
nem vista para o mar
uma casa cansada,

uma casa triste e velha dançando na madrugada
sou uma casa em ruínas
abandonada
como todas as palavras que escrevo
desgraçadamente voando sobre as nuvens cinzentas
sou sem portas varandas
restaurante sem ementa
e tantas
casas como eu
à procura do céu
em zinco as lâminas que o vento semeia
no peito coração das gentes da aldeia,

sou
uma casa
em ruínas
apenas só
amarga
dançando debaixo das árvores de papel
que as palavras silenciosas
sou
sem portas
janelas
nem vista para o mar
uma casa cansada...

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó

As sílabas voláteis da paixão

Coitado, que antes de se finar dizia ser doutor em pornografia e vão de escada, de dia, era bancário, e quando começava a acordar a noite, a noite para ele era o clímax da mulher que vivia dentro dele, e quando começava a acordar a noite, entrava em casa, despia o fato, suspendia a gravata no cabide adjacente à porta de entrada, e
Estás despedido, parvalhão,
Depois de se confrontar com o espelho do guarda-fato e completamente nu, começava a metamorfose, e aos poucos, nascia a menina dona Marilú, Rainha da noite, e que às terças e quintas dançava em cima de uma mesa num bar em Cais do Sodré, um dia, assisti
Estás bem mano?
Nem que sim, nem que não, assisti a um dos seus espectáculos, talvez o mais emblemático da sua pequena carreira, porque para mim, foi o primeiro e o último, ele era realmente linda, mas um grandessíssimo parvalhão,
Hortênsio? Hoje, sussurras-me palavras mágicas que ontem deixei cair sobre as sílabas voláteis da paixão incandescente que provoca na madrugada, sempre que há uma madrugada visível aos olhos das luas sem destino, uma sapiência desumana, suja, imunda, clandestina às vezes, prosaica, outras, nem por isso, as cabeças
Ocas, finas, dentro de quatro paredes de vidro, o cubo, o hipercubo, a raiz quadrada de vinte e cinco, coitado
Porquê
Hortênsio?
Que amanhã era domingo, que amanhã os dias deixavam de ser preenchidos por vãos de escada e sótãos, que amanhã
Eu, o Hortênsio, o irmão do António, e ele deixou de aparecer, e ele evaporou-se completamente como se o sol o absorvesse, ou como se fosse comido por um monstro marinho, um petroleiro com asas de vinil, livros encadernados a couro e completamente abandonados, como eu, num sótão, hoje, que me sinto tristemente só, hoje que nem sou o Hortênsio e nem idade tenho para ser a Marilú, hoje
Morri,
Porquê
Hortênsio?
Ocas, finas, dentro de quatro paredes de vidro, o cubo, o hipercubo, a raiz quadrada de vinte e cinco, coitado
Nunca o soube,
E a morte quase sempre vinha vestida de Primavera, chegava docemente, despia-se, e deitava-se na levemente beleza das palavras não prenunciadas, abraçava-o, afagava-lhe o pouquíssimo cabelo que lhe restava, dava-lhe a mão
Não tenhas medo Hortênsio,
E eu, o irmão do António, nunca tive medo, nunca,
Dava-me a mão
Não tenhas medo Hortênsio,
Nunca meu amor,
E começávamos a flutuar em direcção ao céu nocturno das caves sem janelas
E depois?
O Tejo deixava de se ver.

(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

O nocturno miúdo dos desejos

Como tem passado Dona Margarida?, e eu, não o miúdo, eu a porteira, e eu lá lhe ia dizendo que o maldito reumático não me deixava dormir, e eu, não o miúdo, eu a porteira, a queixar-me das dobradiças e parafusos, E a netinha já deve estar um mulherzinha?
Olhe menina Margarida, um anjo que teve a infelicidade de casar-se com um estafermo, e ao que parece
Quero o divórcio,
Vão divorciar-se, ao menos livra-se daquele paspalho, o meu pai, e só tenho pena dele, eu o miúdo, coitadinho dele, tão novinho, coitadinho dele, um anjo que teve a infelicidade de nascer numa cidade com edifícios de barro e palha com janelas para as urtigas e tojos embrulhados em papel amarelo, e silvas, e pássaros dona Margarida, e pássaros
Ai dona Amélia ainda me lembro da menina Emília em corridas aqui no Hall de entrada, loira, espertaaaa como nunca vi, e deixei de a ver, hoje não a conheço, vamos lá repartir os livros, tu, para a Emília, tu ficas com os livros do Milan Kundera, eu, o meu pai, eu fico com todos os outros, ela, a Emília, porque só fico com os livros de Milan Kundera, eu, o meu pai, porque eu quero, e pássaros dona Margarida, muitos, em cada esquina
É?
Um anjo que teve a infelicidade de nascer numa cidade com edifícios de barro e palha com janelas para as urtigas e tojos embrulhados em papel amarelo, e silvas, e pássaros dona Margarida, e pássaros, e eu, o miúdo, e eu
Porquê pai? Tu, para a Emília, tu ficas com os livros do Milan Kundera, eu, o meu pai, eu fico com todos os outros, ela, a Emília, porque só fico com os livros de Milan Kundera, eu, o meu pai,
Porque eu quero,
E eu, o miúdo, e eu a ouvi-los
Liberta-me, alimenta-te de mim, come-me,
Noite sem fim, quando as ausências programadas cintilam, correm, desgraçadamente pela espinhal medula, as madrugadas, os fantasmas em pálpebras cerradas, húmidas, cansadas em ti, e a Emília
Quero o divórcio,
Como se eu fosse um livro, um pequeno livro, oco, simples, sem palavras, sem carroceis, carrinhos de choque, eu, eu o miúdo, eu como se eu fosse um livro de poesia que ninguém
Eu leio muito
Lê,
Diurno, o nocturno miúdo dos desejos, como se eu, o miúdo, como se eu fosse um livro, grosso, aprisionado numa prateleira longínqua onde barcos de madeira se passeiam, sonham, caminham, e cavalgam montanha acima, até chegarem ao céu dos incensos, e eu, eu o miúdo
Sofrido, cansado, triste, imundo,
e eu, eu o miúdo
À espera de um afago por parte da porteira, a única que nunca se queixava dos ossos que diziam crescer nas paredes do edifício construído em barro e palha, e com janelas
Lembras-te miúdo?
Claro que sim,
Para o quintal emblemado com silvas e tojos embrulhados em amarelo cetim, urtigas, miudezas algumas, e eu, o miúdo, e eu
Decidam-se, quem fica com quem?
E eu, o miúdo
Estás a mentir-me pai, não é verdade que sou um livro
É?
Claro que não.

(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó