quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

O nocturno miúdo dos desejos

Como tem passado Dona Margarida?, e eu, não o miúdo, eu a porteira, e eu lá lhe ia dizendo que o maldito reumático não me deixava dormir, e eu, não o miúdo, eu a porteira, a queixar-me das dobradiças e parafusos, E a netinha já deve estar um mulherzinha?
Olhe menina Margarida, um anjo que teve a infelicidade de casar-se com um estafermo, e ao que parece
Quero o divórcio,
Vão divorciar-se, ao menos livra-se daquele paspalho, o meu pai, e só tenho pena dele, eu o miúdo, coitadinho dele, tão novinho, coitadinho dele, um anjo que teve a infelicidade de nascer numa cidade com edifícios de barro e palha com janelas para as urtigas e tojos embrulhados em papel amarelo, e silvas, e pássaros dona Margarida, e pássaros
Ai dona Amélia ainda me lembro da menina Emília em corridas aqui no Hall de entrada, loira, espertaaaa como nunca vi, e deixei de a ver, hoje não a conheço, vamos lá repartir os livros, tu, para a Emília, tu ficas com os livros do Milan Kundera, eu, o meu pai, eu fico com todos os outros, ela, a Emília, porque só fico com os livros de Milan Kundera, eu, o meu pai, porque eu quero, e pássaros dona Margarida, muitos, em cada esquina
É?
Um anjo que teve a infelicidade de nascer numa cidade com edifícios de barro e palha com janelas para as urtigas e tojos embrulhados em papel amarelo, e silvas, e pássaros dona Margarida, e pássaros, e eu, o miúdo, e eu
Porquê pai? Tu, para a Emília, tu ficas com os livros do Milan Kundera, eu, o meu pai, eu fico com todos os outros, ela, a Emília, porque só fico com os livros de Milan Kundera, eu, o meu pai,
Porque eu quero,
E eu, o miúdo, e eu a ouvi-los
Liberta-me, alimenta-te de mim, come-me,
Noite sem fim, quando as ausências programadas cintilam, correm, desgraçadamente pela espinhal medula, as madrugadas, os fantasmas em pálpebras cerradas, húmidas, cansadas em ti, e a Emília
Quero o divórcio,
Como se eu fosse um livro, um pequeno livro, oco, simples, sem palavras, sem carroceis, carrinhos de choque, eu, eu o miúdo, eu como se eu fosse um livro de poesia que ninguém
Eu leio muito
Lê,
Diurno, o nocturno miúdo dos desejos, como se eu, o miúdo, como se eu fosse um livro, grosso, aprisionado numa prateleira longínqua onde barcos de madeira se passeiam, sonham, caminham, e cavalgam montanha acima, até chegarem ao céu dos incensos, e eu, eu o miúdo
Sofrido, cansado, triste, imundo,
e eu, eu o miúdo
À espera de um afago por parte da porteira, a única que nunca se queixava dos ossos que diziam crescer nas paredes do edifício construído em barro e palha, e com janelas
Lembras-te miúdo?
Claro que sim,
Para o quintal emblemado com silvas e tojos embrulhados em amarelo cetim, urtigas, miudezas algumas, e eu, o miúdo, e eu
Decidam-se, quem fica com quem?
E eu, o miúdo
Estás a mentir-me pai, não é verdade que sou um livro
É?
Claro que não.

(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó

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