quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Absorviam-te as palavras

Insisto, desistes facilmente como se fosses a chuva miudinha dos finais de tarde em Belém, e nunca percebi, senti, sem ti, perceber

Porque me perseguias entre sombras e canaviais que escondem a cidade, porque me perseguias, sem perceber, sem ti e sinto, hoje, não propriamente hoje, ontem talvez, às vezes esqueço-me que já morri, defecado dentro dos orifícios das lilases masmorras de granito, sentavas-te e acorrentavas-te aos candeeiros encardidos, velhos, ontem, hoje não

Perceber, sem ti, sentir-te dentro dos meus olhos cabisbaixos, amorfos, fabricando euros clandestinos num barracão da Madragoa, e entortavas-te com a vestimenta disfarçada de gaja Espanhola, made in China, perceber

Hoje não, desculpa-me,

E entortavas-te nos lençóis embebidos em vodka, senti, sem ti

Hoje não, desculpa-me,

Sem ti e sinto, hoje, não propriamente hoje, ontem talvez, às vezes esqueço-me que já morri, defecado dentro dos orifícios das lilases masmorras de granito, os sexos murchos como as palmeiras da Baía de Luanda, quando o vento, as levava, e eu

Sentavas-te, sem ti, senti, sentavas-te a olhar o mar, e esperavas, pelo regresso das palmeiras, algumas regressavam, outras morriam, e outras

E entortavas-te nos lençóis embebidos em vodka, senti, sem ti

Libertavam-se das manhas de cacimbo, e o capim mergulhava nas tuas coxas de linho, o cortinado tremia, sentavas-te

Sentia-te,

Sentavas-te nos rochedos que as nádegas, e entortavas-te nos lençóis embebidos em vodka, senti, sem ti a paixão dos homens que se suicidavam dentro dos cubos de vidro, e sentavas-te nos rochedos que as nádegas de manteiga desenham nos espaços vazios da areia das parais do Mussulo, caraças

Sentavas-te e sentavas-te e sentia-te

Regressavam os barcos nocturnos das viagens sem regresso, perdias-te nas caves escondidas dos porões esfomeados que a saliva do desejo traçava nas paredes murmuradas em parêntesis incompletos, pontos finais sem fim, continuação da história, da mulher de saltos altos e meia de vidro no palco em delírios e sentavas-te

No caixão revestido de sorgo, amêndoas e chocolates fora de validade, acreditavas nas esplanadas junto ao rio, abrias as pernas, fincavas os dentes num pedaço de pano, sujo, imundo, húmidas as tuas mãos, e

Absorviam-te as palavras, desculpa-me, sentavas-te, sentavas-te, senti, sem ti, absorviam-te as palavras como se fosses um poema de amor, como se fosse uma rosa, uma nuvem, pássaro, ou uma árvores inventada pelas mãos de um apaixonado motorista dos machimbombos, com asas de de vodka, embebias os lençóis em sangue menstrual, limpidamente à janela de onde se observava a pastelaria, e quem diria

E entortavas-te nos lençóis embebidos em vodka, senti, sem ti,

E quem diria, que eu, um dia, acabaria como um lençol mutuário, sem testamento, herdeiros, e quem diria, que eu, um dia, sem ti e sinto, hoje, não propriamente hoje, ontem talvez, às vezes esqueço-me que já morri, defecado dentro dos orifícios das lilases masmorras de granito, os sexos murchos como as palmeiras da Baía de Luanda, quando o vento, as levava, e eu

E eu

Um vulcão,

E eu

Sentia-te,

E eu

Libertava-me das manhas de cacimbo, e o capim mergulhava nas coxas de linho construída por uma noite de insónia, e o cortinado tremia, e sentavas-te

Sentia-te,

Nos meus silêncios do inverno à lareira dos sonhos,

E eu

Não acreditei.

(Texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

Quatro segundos de voz


Roubo às palavras ditas
palavras escritas,

a melancolia
quando acordo não percebendo que acordei
e tropeço nas areias húmidas das rochas incendiárias
e não sei que o dia compreendia
a enormíssima porcaria
de fato e gravata
que é o doutorado diabo
em silêncios mergulhado
torturado por uma velha de mãos efémeras em cio
com um sorriso na veia
maldita mulher que o vento semeia
nas coxas exaustas das tempestades de areia,

Roubo às palavras ditas
palavras escritas,

e eu sabia
que um dia
me fodia
acreditando nas palavras desertas
hirtas e difusas
e eu sabia
que um dia
um velho dia
ele vinha
me pegava
e me levava
até aos confins olhos das amêndoas que jazem nas cinzentas lajes do oceano,

Roubo às palavras ditas
palavras escritas,

e sento-me sobre as nádegas do amor
sou feliz
talvez
um pouco
muitas vezes dentro de um prato de sopa
a tua simples madrugada
em gaivotas voadoras
loucas
que a tua boca de papel amarrotado
dissimila
e deita-se nas celestes luzes das cidades de vidro
a dita palavra escrita dita roubada em quatro segundos de voz,

P.S.
Roubo às palavras ditas
palavras escritas.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó

Cachimbo de Água em destaque


(Que era pintor e usava sandálias de couro)

Cachimbo de Água em destaque
Sapo Angola


terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Que era pintor e usava sandálias de couro

Sentia-me confusa, tremiam-me as pernas, dos braços, meus, claro, um pedaço de raiva remexia-se convulsivamente, e olhavam-me pelo interior dos cortinados de noite, que forçosamente cerravam as janelas do castelo da senhora dos grandes milagres, onde, desde que me recordo, vivi, cresci às mãos de uma religiosa meio louca, surda, que tinha alguns tiques, um deles, enquanto falava comigo, metia as mãos nos bolsos do meu hábito encarnado com listras azuis, e quando me apercebia, já alguns do objectos que eu transportava jaziam nas mãos dela,

Desculpa-me minha filha, mas faço-o sem perceber,

Usava um lenço de papel pardo ao pescoço, fumava às escondidas, e tenho uma leve sensação que gostava de mim, não o gostar como quem gosta de uma filha, gostava no outro sentido, quando pela noite, descia a Almirante Reis e numa das pensões de hora e meia, entrava, despia-se, e no silêncio da noite convulsivamente, construía barcos de madeira prensada que posteriormente um velho marinheiro utilizava quando ia em sonhos até alto mar e cismava que tinha pescado uma menina loira com olhos verdes,

Tinha um amante o teu pai,

Fui literalmente pescada por um marinheiro em alto mar, numa noite de tempestade e no intervalo de puxarem as redes e de ele atafulhar o cachimbo de prata com ópio, e enquanto acendia, e enquanto não acendia, e apagava-se, e novamente acendia, o adjunto do mestre foi içando as redes, até que

Comandante, comandante, temos um grave problema, e enquanto ouvia o adjunto pensei logo que tivesse sido o Francisco que caísse à água, pois quase sempre andava embriagado, gritei, O que foi adjunto?

Um amante?

Temos na rede uma menina loira com olhos verdes, pensei, Está ele também bêbado, maldito vinho..., e olhei

E não queria acreditar, pensei que fosse do ópio, mas percebi que não, era mesmo uma linda menina, raios, e agora? Que vão dizer os meus amigos? Que fosse do ópio, não, era mesmo uma linda

Tinha um amante o meu pai?

Que era pintor e usava sandálias de couro e vestia calções com mesquinhas letras transversais, e lia Proust, e nunca

Lhe perguntei o significado do amor, sentia-me confusa, tremiam-me as pernas, dos braços, meus, claro, um pedaço de raiva remexia-se convulsivamente, e olhavam-me pelo interior dos cortinados de noite, que forçosamente cerravam as janelas do castelo da senhora dos grandes milagres, a irmã Margarida, pede um desejo

E eu sem hesitar, abraçar o meu pai, tocar-lhe no cabelo indefeso que a própria idade lhe desenhou na cabeça, pegar-lhe na mão, sentir o cheiro

Do cachimbo do teu pai adoptivo?

Que era pintor e usava sandálias de couro e vestia calções com mesquinhas letras transversais, e lia Proust, e nunca

Tinha um amante o meu pai?

E nunca me desejou

Até que o mar me levou.

(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

Às quatro paredes invisíveis da abelha inseminada


A casa louca às quatro paredes invisíveis
que o deserto africano constrói
sobre o cansaço adormecer de uma árvore voadora
e a triste saudade que uma simples folha de papel tece
na boca inocente do morcego
há noites que comem as outras noites incompletas pela imensidão arte do esconderijo
sôfrego
sofrido mendigo do prazer amigo

há ainda noites
separadas
amantes
dramatizadas
viúvas
casadas

doentes
sofridas marés de solidão
que os barcos do desejo rompem
esmagam
nas planícies faces xistosas da pele de uma abelha
à procura desenfreadamente pelo regresso das vozes de granito

não sei
eu
a casa de ramos e esterco empilhados sobre as camas do abismo
janelas sem guardião
portas de entrada sós
uma mulher com asas
não sei
eu

na fogueira mãe abraços
em brasas de sémen do tecto do palheiro
as teias de aranha cinzentas empobrecidas pelo fumo do cachimbo de prata
lata
que a noite comida pela noite anterior
deixou ficar
abandonada
sobre a mesa de quatro patas
o amigo o cão amigo de areia
à espera do mar que incendeia
que semeia os penhascos incensos do amor proibido
a lata inseminada pela cerveja fumegante dos espíritos às insónias molduras

quatro simples fotografias
eu
ele
ela
e a manhã em que me despedi de Luanda...


(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Marinheiro de Luz


Achas-te superior
indigente
com falta de amor
como muita gente,

achas-te superior
rainha das coisas boas
montanha de luz
achas-te uma flor
uma simples flor
com pernas de cansaço
e braços
aos abraços
oiço o balançar da porta de entrada
truz truz truz
ninguém será certamente para me dar nada
nem uma simples corda de aço,

um prato com sopa de legumes encarnados
vinho do porto velho como os pássaros com asas de mar
(achas-te superior
indigente
com falta de amor
como muita gente)
e às vezes
multiplicam-se as manhãs de inverno
cresce o inferno
maré de marinheiro
quando eu sentado no barbeiro
penso solitariamente nas nuvens de barbear,

sinto-te em espuma no meu rosto envelhecido
e das saudades
as pequenas saudades
correr amar correr livremente
e voar
e amar
voar até cair nos teus braços
abraços
uma corda de aço
do tão construído cansaço
a espuma de ti mergulhada no meu simples desenho da alvorada
e tão triste e tão só tudo aquilo que foi esquecido,

achas-te superior
indigente
com falta de amor
como muita gente,

mas continuarás a ser uma resma de palavras
sem nexo
moribundas quando a mergulhada canção de amor
não é uma flor
é uma canção
que sofre
que dói
e mói
as pedras finas da calçada dos amores proibidos
e dói
mói
a doçura tristeza do desejo.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

As cinco primeiras insónias da madrugada

Suicidou-se nos meus braços,

Quatro filhos, um marido alcoólico, o amante constantemente com as primeiras cinco insónias da madrugada, um cão, um pássaro, que mais ela podia desejar?

Saía de casa por volta das 04:30 horas, ainda não tinha acordado o dia, levitava-se pela casa em bicos de pés, beijava na face cada um dos filhos, rogava uma praga ao marido embriagado e pensava nas primeiras cinco insónias do amante, pegava-lhe na fotografia ao de leve, e beijava-o docemente

Nos meus braços,

O cão sabia ler, o cão sabia escrever, e o pássaro

Nos meus braços,

Fazia a contabilidade da casa, organizava os jantares de família, digamos que ele era a governanta lá do sítio, cabisbaixo, de asas poisadas sobre a lareira dos sonhos, fazia contas, e quando chegava à prova dos nove

Foda-se a conta está errada,

Nos meus braços, os fósforos que a morte come quando de deita o dia, chega a casa cansado, desinteressadamente infeliz, faltava-lhe tudo, os rebuçados, as guloseimas, as amêndoas de chocolate e o caramelo Espanhóis que o contrabandista do zarolho oferecia todos os anos pelo Natal, felizmente já faleceu, e vimos-nos livres dos caramelos

O meu pai sempre disse, isto um dia vai acabar mal, nos meus braços, O cão sabia ler, o cão sabia escrever, e o pássaro

Enfaixado nos caramelos de Luz, chovia, o meu pai acordava todas as manhãs embrulhado em vómitos e crateras de sulfato de amónio nos lábios, acendia o cigarro da desgraça, o cão impaciente, o pássaro fodido, e a minha triste mãe de lágrimas nos olhos a escrever as queixas nas faces rosadas do amante, faltava-lhe qualquer coisa

Nos meus braços, suicidou-se ao entardecer,

E o meu pai sempre disse, isto um dia vai acabar mal, nos meus braços, o cão sabia ler, o cão sabia escrever, e o pássaro não resistiu aos salpicos das garras do gato do vizinho que aproveitando a janela da cozinha entreaberta, zás..., fodeu-lhe o pescoço

Enfaixado nos caramelos de Luz, chovia, o meu

Foda-se a conta está errada,

Docemente a beijava, sem perceber que a casa ardia na fogueira da paixão, os meus queridos irmãos

Suicidou-se nos nossos braços,

Eu

Caminhava com quatro filhos, um marido alcoólico, o amante constantemente com as primeiras cinco insónias da madrugada, um cão, um pássaro, que mais posso desejar?

A morte,

O gato constrói um arroto que todo o prédio presenciou sonoramente, na Antena 3 desenhava-se o Planeta 3 nas falsas palavras dos livros dele, os uivos, os gemidos, os milagres concedidos à minha querida mãe, e que hoje partilha uma assoalhada bem lá no alto

A morte de um orgasmo,

Bem lá no alto, No céu?

Os meus três irmãos os estúpidos de sempre, engasgados nas asneiras da literatura vendida no vão de escada, subia-se, subia-se

No sexto andar seus parvalhões,

Subia-se até que chegávamos ao céu,

Eu, três irmãos, a minha querida mãe melancólica, o meu paizinho sempre embriagado, o amante da minha mãe constantemente à procura das cinco primeiras insónias da madrugada, um cão, um pássaro, que mais eu podia desejar?

A morte de um orgasmo

Na cabeça da lua, nos braços

Bem lá no alto, No céu?

Suicidou-se nos meus braços sem perceber que eu era um cadáver ensonado que de jardim em jardim, que de embarcação em embarcação, que de autocarro em autocarro (riscar autocarro porque estão em greve), que de papoila em papoila

Bem lá no alto, No céu?

A morte de um orgasmo depois do suicídio das lâmpadas de néon que todos eles utilizam no Natal,

A morte de um orgasmo

Na cabeça da lua, nos braços

Bem lá no alto, No céu?

Sim, no céu, os dias deixaram de ser dias, os dias, pequeníssimas folhas de papel voando sobre um ninho de cucos...

(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó

Festas Felizes

O espelho curvilíneo da melancolia

Todas as noites me afundo num oceano de saudade, mergulho, indefeso, procuro a sombra marítima que brinca dentro do meu peito, sem jeito para alguma coisa, todas as noites me afundo, de saudade, na saudade, viver sem saber o que é o medo, viver, sem saber... o que é

algum dia, qualquer dia, ouvirás as vozes que deixaram dentro da gaveta dos sonhos, as tuas mãos,

o que têm as minhas mãos pai?

as tuas mãos mergulham, todas as noites, de saudade em saudade, de peito em peito, foge-te o fôlego, as coisas belas morrem, afogam-se no oceano de saudade, às vezes, outras, nem por isso, e procuras-me dentro dos pinheiros mansos da floresta das mães abandonadas, as flores, as árvores, e todos os filhos das manhãs de inverno, aqui, agora, procuras-me e eu escondo-me

o que têm pai?

olhas-me no espelho curvilíneo da melancolia absorvida pela pele esbranquiçada de um esqueleto sem sono, penso

desfaço, não desfaço, e acabo por concluir que a barba é um acessório desnecessário, o cabelo tomba no jardim com os canteiros alinhados, o tapete, a carpete, alguns dos tacos devido à humidade levantaram-se, de pé, em tesão, e às vezes, e às vezes

o que têm pai?

tropeço, linearmente vou de encontro frontalmente contra as flores de cetim junto aos cortinados de linho, hesito

o que têm pai? Penso, e às vezes

pareço um pedaço da pano com remendos e buracos, como o telhado do palheiro, telhas em perfeitas condições, e telhas

o que têm as telhas pai?

e telhas com os membros inferiores fracturados, moribundas, que deixam passar as lágrimas do céu, as tuas mãos mergulham, todas as noites, de saudade em saudade, de peito em peito, foge-te o fôlego, as coisas belas morrem, afogam-se no oceano de saudade, às vezes

todas as noites me afundo num oceano,

todas pai?

todas, todas as noites.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó

domingo, 23 de dezembro de 2012

Maria Feliz

Nasci numa aldeia cinzenta, e todas as pessoas traziam na cabeça uma flor de lótus, uma pequena ribeira caminhava sem destino entre os canaviais e os choupos velhos e caducos que viviam em comunhão de bens, felizes no casamento, tinham três filhos, duas raparigas, e eu

eu continuo sem saber o que sou,

as raparigas desde muito cedo começaram a fazer desenhos nas paredes da casa, um rés-do-chão enfaixado nas amoreiras e silvais que depois de cair a noite desapareciam como desaparecia o fumo dos cigarros do meu irmão, sisudo, chato, um travesti de trinta e dois anos, bancário, regressava a casa depois de um longo dia de trabalho, apanhava o eléctrico, contava as pombas até chegar à porta de entrada do prédio, entrava, começava a subir as escadas tranquilamente, no patamar do primeiro andar ainda era o Carlos, subia, subia, e quando chegava ao quinto andar,

agora sei o meu nome,

Maria Feliz, entrava em casa, descalçava os sapatos altíssimos e colocava as pernas sobre a mesa de mármore que jazia no centro da sala de estar, pegava no comando da aparelhagem sonora, carregava no PLAY e sempre o mesmo CD no seu interior

agora sei o meu nome,

Wordsong (AL Berto)

e ele,

ela,

tinham saudades dos tempos da infância quando apenas tinham como memória uma aldeia cinzenta, apodrecida, a madeira das traves e dos barrotes, de vez em quando, pingava um líquido sujo e espesso, e quando lhe passava o dedo e levava-o à boca

ela percebia que eram lágrimas com mel,

chovia dentro de casa, tínhamos um cão a que dávamos o nome de REX, e quase sempre o gajo desobedecia-nos, traquina, as raparigas desde muito cedo começaram a fazer desenhos nas paredes da casa, um rés-do-chão enfaixado nas amoreiras e silvais que depois de cair a noite desapareciam como desaparecia o fumo dos cigarros do meu irmão, e nós deliciávamos-nos com os poemas

eu continuo sem saber o que sou,

ele

sisudo,

ela

levantava-se do sofá, acabava de despir-se, e quando se olhava no espelho e percebia que não tinha sobre si outra qualquer roupa, nem vestígios dele, corria até à casa de banho, abria a torneira da água quente, deixava-a borbulhar como uma panela ao lume com estrelas e pedaços de néon, e aos poucos e silenciosos sonhos do mar, começava numa carícia intensiva, até se cansar, até perceber que ela era ela, até

ele

sisudo,

ela

ela percebia que eram lágrimas com mel que o seu corpo derramava como se fossem a seiva envenenada das árvores de papel, sisudo, e pendurava no armário o Carlos, e a lua apoderava-se dela, e a lua escrevia no corpo dela,

viste o Carlos?

ele

sisudo,

ele

chato,

ele, que todos os dias se levantava de madrugada, Maria Feliz ia ao guarda-fato, tirava o Carlos, vestia-se, raramente tomava o pequeno-almoço, deixa-a sobre a cama até que o cair da noite se agarrava às janelas do quinto andar,

sisudo,

agora sei o meu nome, agora percebo a cor da aldeia onde nasci, vivi, cresci..., e quase

morri,

ela

viste o Carlos?

chato, sisudo, as árvores que nem os malditos pássaros encarnados queriam sentar-se sobre elas, é triste, era triste a solidão dos dias, e percebia que as minhas irmãs

não gostam de mim, sempre me odiaram, viste o Carlos? Apenas palavras para os poucos transeuntes ouvirem, porque nas minhas costas

o Carlos é um chato, e sisudo, e

as ruas deixavam de pertencerem-me, e

ela

viste o Carlos?

e elas sempre souberam que nunca existiu nenhum Carlos, e elas

as raparigas desde muito cedo começaram a fazer desenhos nas paredes da casa, um rés-do-chão enfaixado

numa rua de Cais do Sodré, e quase

morri.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó