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sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Se Deus quisesse

 Se Deus quisesse

Hoje era sábado

Amanhã seria domingo

Ontem

Ontem seria quinta-feira

Porque às sextas eu não posso

Porque à sexta estou muito ocupado

 

Se Deus quisesse

Não havia guerra no Mundo

E oiço-os em coro (ó palerma, Deus não tem culpa da guerra)

Pois

Pois

Se Deus quisesse não fazia homens estúpidos

Imbecis

Gananciosos…

Os que fazem a guerra

 

Se Deus quisesse

Os pássaros usavam óculos

E motores a jacto

Viam melhor nas curvas

E nunca se cansavam

E já agora…

Rodinhas para deslizarem no pavimento

 

Se Deus quisesse

Havia todas as quintas-feiras

Pelas dezassete horas e trinta minutos

Sessões de Poesia no Jardim Doutor Matos Cordeiro

Mas…

Mas como este Deus é muito estúpido

Nem há poesia no Jardim

Nem há Jardim da Poesia

Nem há poemas

Nem há nada

(há bombos e que mais querias tu?)

 

Se Deus quisesse

Se Deus quisesse só chovia às terças e às quintas e aos sábados

Às Segundas e às sextas

Tínhamos sol aos quadradinhos

E ao domingo

Ao domingo temos moelas e churros

E descanso semanal do pessoal

(e oiço… é uma dose de quitetas para a mesa junto à televisão)

 

Se Deus quisesse

Todas as crianças eram felizes

Nenhuma criança tinha fome

Não é que Deus não queira

O problema é que Deus fez pais e mãe imbecis e estúpidos e tudo o mais

Como os que fazem as guerras

Como os que matam as crianças que querem ser felizes

(as calças que me deram hão-de ajusta-se ao corpo… AL Berto)

 

Se Deus quisesse

Ninguém morria

Não é que Deus tenha mão na morte

Mas em todo o caso…

Podia dar um jeitinho a uns

E um empurrãozinho a outros (aos filhos da puta, filhos da puta para os filhos, filhos da puta para os pais, filhos da puta para a mulher, filhos da puta para o Universo, esses podiam morrer todos)

(eu morrerei, ele morrerá, depois morrerá a placa onde está escrito Tabacaria… ai meu grande senhor Álvaro de Campos)

 

Seu Deus quisesse

Ai se Deus quisesse

Quisesse ele ser

Que ele seria

Não

Às sextas não posso

Se Deus quisesse

À noite podia haver sol

E de dia

E de dia haver luar

(grande estúpido este, então não era só trocar o dia pela noite?)

Às sextas estou muito ocupado.

 

 

 

 

Alijó, 30/12/2022

Francisco Luís Fontinha

domingo, 18 de dezembro de 2022

Rio sem nome

 Deixa que as tuas mãos morram

E que o corpo se extinga nas páginas de um livro,

 

Deixa que a noite invente nas estrelas

O sorriso daqueles que partiram.

- O regresso das árvores quando tudo se extinguiu,

Deixa que as tuas mãos

Invadam este caixão de prata

Com duzentos e seis ossos de sono.

 

Deixa que as tuas mãos morram

Na lareira da noite

Enquanto o meu caixão

Dorme nos lábios deste rio sem nome.

 

 

 

 

Alijó, 18/12/2022

Francisco Luís Fontinha

sábado, 17 de dezembro de 2022

A fogueira

 A noite mata-me

Todas as noites

Um pedacinho do meu corpo morre

Todas as noites

A fogueira que habita dentro de mim

Incendeia as mãos com que escrevo as minhas palavras,

 

E as minhas palavras

Estas palavras,

 

Morrem na fogueira que habita dentro de mim.

 

 

 

 

 

 

Alijó, 17/12/2022

Francisco Luís Fontinha

Destino

 Não morras no meu corpo,

Não suportaria mais mortes no meu corpo,

Não morras enquanto o dia é dia,

Enquanto o dia é um tapete de sombra.

 

Não morras no meu corpo,

Porque a morte é uma viagem sem destino,

E acredita que não me apetece viajar…

 

E tão pouco sei o que é o destino.

 

Não me morras,

Não me morras como morreram as minhas árvores,

Os meus pássaros,

E todos os meus barcos,

Não me morras neste corpo em silêncio,

Que o granito que transporto nos ombros

É tão pesado,

Tão pesado…

Que mal consigo voar.

 

E se um dia morreres no meu corpo,

Avisa-me; para que eu saiba que vais morrer.

 

Não. Não morras no meu corpo.

 

 

 

 

 

Alijó, 17/12/2022

Francisco Luís Fontinha

sábado, 10 de dezembro de 2022

Se eu não morrer

 Se eu não morrer

Ensinar-te-ei a escrever as primeiras palavras

As tuas primeiras equações

Gostas de equações

As mais simples

Às mais complexas

Equações trigonométricas

Equações de segundo grau

Equações diferenciais

 

Se eu não morrer

Levar-te-ei a ver o primeiro clarear da manhã

O teu primeiro luar

O primeiro pôr-do-sol

Se eu não morrer

Ler-te-ei o primeiro poema

Tantos poetas que tenho para te mostrar

Herberto

AL Berto

O'neill

Cesariny

Se eu não morrer

Ler-te-ei textos de Proust

Gogol

Ou de Luiz Pacheco

 

Se eu não morrer

Ensinar-te-ei a desenhar nos lábios da madrugada

A pintar o sono na geada

Se eu não morrer

Levar-te-ei a ver o mar

E os barcos da minha infância

E as mangueiras da minha infância

 

Se eu não morrer

Ler-te-ei os meus textos

Os meus poemas

Os meus livros

E mostrar-te-ei as minhas telas

 

Se eu não morrer

Mostrar-te-ei como se constroem pontes

Edifícios muito altos

 

Se eu não morrer

Oferecer-te-ei os teus primeiros livros

As tuas primeiras tintas

As primeiras telas

Se eu não morrer

Tirar-te-ei os teus primeiros retractos

E conhecerás as tuas primeiras cidades

Vilas

E aldeias

Se eu não morrer

Levar-te-ei ao Tejo

E a todos os rios do Planeta

Onde há um rio para olhar

 

Se eu não morrer

Ouvirás todo o tipo de música

E assistirás a todo o tipo de dança

Se eu não morrer

Levar-te-ei ao circo

Ao teatro

Cinema

 

Se eu não morrer

Farei tudo isso

Enquanto sentado numa cadeira em frente à Baía de Luanda

Espero que me levem

Que me levem para as sombreadas paisagens de prata

E me deixem brincar no telhado zincado de uma nobre cubata

 

Se eu não morrer.

 

 

 

 

 

Alijó, 10/12/2022

Francisco Luís Fontinha

terça-feira, 6 de dezembro de 2022

Quase tudo morre

 Sejamos francos

Quase tudo morre

 

Morrem as árvores e os pássaros

E os filhos dos pássaros

E os filhos das árvores

Morrem os barcos

Os filhos dos barcos

E os passageiros dos barcos

Morrem as estrelas

E um dia morrerá a Terra e a Lua

Morre a noite

Quando acorda o dia

E morre o dia

Quando acorda a noite

 

Morrem os rios

E as montanhas

Morrem os corpos

E há corpos vivos que estão mortos

 

Um dia morrerá o sol

 

E se a lua morrer

Não terás luar

 

E se o sol morrer

Não terás o pôr-do-sol

 

E o que te importa olhar o mar

Se não há o pôr-do-sol?

 

Morrem as casas

As ruas e as cidades

Morrem os mendigos e a pobreza

Quando morrem os pobres

 

Morreu o portão de entrada

Do quintal de Luanda

Quando me sentava à espera do avô Domingos

Depois de uma longa tarde a passear os machimbombos com um cordel

Pelas ruas de Luanda

Morreram as mangueiras do quintal

Morreram as mangas

Morreu o avô Domingos

E os machimbombos do avô Domingos

Morreram os calções e as sandálias

E o triciclo

Morreu o chapelhudo

Depois

Morreram os papagaios em papel

E a construtora dos papagaios em papel

 

Morreu a escola junto ao jardim

(assassinada)

Morreu o antigo campo de futebol

E que hoje é o mercado

Morreu o velho Maximiniano

Que com um carro de mão

Transportava as bancas em madeira para aluguer nos dias de feira

 

Morreu o Dispensário

A menina Maria e a Tuberculose

(felizmente que a tuberculose morreu)

Morreram quase todos os gajos

Que fumavam charros nas escadas do Dispensário

 

Antes do avô Domingos

Morreu o avô Francisco

Depois a avó Valentina

A avó Silvina

O tio Augusto

Primos

Tios

Primos e tios e tias e primas

Morreram

 

Morreu o café Luso e a cozinha do café Luso

E os charros que se fumavam na cozinha do café Luso

E alguns dos gajos que formavam charros na cozinha do café Luso

Morreu o primeiro Oásis e hoje vendem lá comida de plástico

 

Morreu a peixaria que habitava entre o Oásis e a Ribadouro

 

Morreu o café da Paz

E as janelas do café da Paz

 

Morreram os amigos

Os que fumavam

Os que bebiam

Os que fumavam e bebiam

Os que nem fumavam nem bebiam

 

Um dia

Começou a morrer o cabelo do meu pai

Depois e aos poucos

Toda a parte direita da cara e o couro cabeludo

Morriam

Caíam camo caem as folhas no Outono

Por fim

Morreu o meu pai

 

Ao outro dia

Começou a morrer o cabelo da minha mãe

(dona Arminda, quantos cigarros fuma por dia? – nenhum, Doutora Luísa, nunca fumei!)

- O seu filho tem de deixar de fumar

Não deixei

E também a minha mãe

Morreu

 

Morreu o barco que me trouxe de Luanda

Morreu a carruagem da CP que me trouxe de Lisboa para o Porto

E do Porto para o Pinhão

Morreu o carro que me trouxe do Pinhão para Alijó

E o motorista do carro que me trouxe do Pinhão para Alijó

 

Morre o silêncio

O beijo

Morrem os lábios onde brincam os beijos

Morrem os olhos que nos iluminam

E a luz que ofusca os olhos

Morre a manhã

E o desejo da manhã

E a manhã em desejo

Morre o abraço

O uísque

E o bagaço

Morre a paixão

Morre o amor

O marido perde a companheira

A companheira perde o amante

O filho perde o pai

O pai perde o filho

Tudo perde

Tudo morre

 

Morre a lareira quando deixa de ter lenha

E morre a lenha

Quando a lareira acorda de mau humor

 

- E a saudade, meu filho?

O que tem a saudade, mãe?

A saudade morre, mãe?

- A saudade, meu querido, a saudade nunca morre

 

- E os poemas, meu filho?

O que têm os poemas, pai?

Os poemas morrem?

- Os poemas, meu querido, os poemas nunca morrem

 

Morreu o banco de jardim

Que estava estacionado em frente aos Correios

À noite

Sentava-se lá uma linda mulher

De livro na mão

Livro que eu já tinha lido

E quando percebi

Já tinha a minha mão no livro dela

E ela tinha a mão na minha mão

Falávamos de literatura, poesia, arte e música

Até que de madrugada

A mãe dela

Também já morta como o banco de jardim

Vinha-a buscar

E eu furioso

Pronto a assassinar o resto da noite

Para que brevemente fosse dia

Durante a tarde

Escrevíamos em conjunto poesia

Morreu o banco de jardim

Morreu a mãe da linda mulher

A linda mulher não sei se morreu

Mas o livro ainda deve andar por qualquer uma das prateleiras da minha estante

 

Sejamos francos

Quase tudo morre.

 

 

 

 

 

 

 

Alijó, 06/12/2022

Francisco Luís Fontinha

sábado, 26 de novembro de 2022

O louco menino

 Este inferno

Do frio silêncio

Do louco menino

O Inverno

Do inferno

A noite é a morte

Na morte da noite

Quando as palavras

Morrem

E as estrelas

Levam-me para os teus braços

E adormeço

 

Este inferno

De caminhar nesta estrada

Neste túnel

Sem saída

 

E o pão

Traz a mim a fome

Quando este inferno

Do Inverno

Rouba-me o coração

E rouba-me a morte

 

Não valho nada

 

E este inferno

Do frio silêncio

Do louco menino

Corre-me nas veias

Quando procuro nos teus olhos

Envelhecer

Sem morrer

Enquanto dorme a Primavera.

 

 

 

 

Alijó, 26/11/2022

Francisco Luís Fontinha

terça-feira, 22 de novembro de 2022

As palavras do mar

 Em círculos

Que deixo de existir

Das pobres janelas em teu doce olhar

Pequenos quadrados

Lábios que desejam o mar

Entre a planície e a triste paisagem da paixão

 

E se o amanhã não acordar

Tal como as minhas palavras

Se morrerem de enfarte

Na tua sanzala de amar

O corpo que voa

Enquanto em círculos

Deixo

Deixo de existir e apago na minha mão

O desgraçado fogo da insónia

Porque o beijo em círculos

 

Senta-se junto ao rio

Um rasto de sémen nas pedras parideiras

No uísque poema da loucura

E sejamos justos

Sejamos honestos

Este dia em círculos

Os homens embrulhados no sono

Há uma cama em desejo

Das sereias em cetim

A minha boca morde o poema

 

Abandono a enxada que ama a vinha doirada

Da tua alma camuflada

Dos incêndios às lágrimas

São sombras

São flores

 

São a espingarda em abençoado cansaço

Longe de ti

Dos teus olhos minerados

E sinto a tua mão

Que arde no meu rosto

O medo

A fome que poisas no meu peito

Em cigarros assassinos

Em cadeiras ao vime sonhar

E um pobre defunto deseja o mar

 

E o mar que ama

Chora

E dorme estátua de cera

Em círculos

 

 

E deito fora as minhas mãos

E abandono este altar de talha cansada

Onde habito e rezo

Depois chamo pela madrugada

E recebo os teus lábios

Em círculos

Em desejo menina cantar

As canções do supremo olhar

São palavras meu Deus

São as palavras do mar.

 

 

 

 

Alijó, 22/11/2022

Francisco