sexta-feira, 31 de março de 2023

Oração

 Peço a Deus-todo-poderoso

Criador da vagina

E do pénis

Deus dos mares e das terras não cultivadas

Deus da enxada

E do prazer

Deus que inventou o homem

E a mulher

E o homem da mulher

Quando a mulher da mulher

Depois do filho dele

Sentado à esquerda de:

Bem-vindo a casa.

 

Deus misericordioso

Dos Ricos

Dos pobrezinhos

Dos ranhosos

E das ranhosinhas…

Deus

Entre todos os Deuses

E entre todas as equações

E dentro de todas as camas

Em todos os lençóis

Deus do tesão

Da infertilidade

Deus dos asteróides

E dos espermatozóides

 

Peço a Deus-todo-poderoso

Criador da vagina

E do pénis

Servomotor da paixão

Piloto-automático do desejo

Entre duas pinceladas de silêncio

E um grama de tesão,

 

Deus ao cubo

À vigésima quinta potência

Quando a raiz quadrada do medo

Em função do mestre faroleiro

O gajo deita farpas na fogueira

E o desejo abre a janela do paraíso

E Deus

Também o obreiro e criador e mister e pai do filho acabado de nascer

Ranhoso

Ranhosa

Flor em papel

Lápis da madrugada

Quando o Deus

Criador

Designer de todo o Universo…

Morre…

À espera de uma consulta médica:

O louco toma a drageia e esconde a cabeça na almofada.

 

 

 

 

Alijó, 31/03/2023

Francisco

quinta-feira, 30 de março de 2023

O cãopoetacolhãdochãonochão

 CUIDADO COM O POETA: ele MORDE.

Aquele que te ladra

Aquele que se alicerça em ti

Que te come

Que se delicia com a tua língua

Aquele que escreve nos teus braços

Nas tuas nádegas

Aquele que finge ser a tua sombra

Que lê os teus livros

Que come a palha do teu colchão

Aquele que voa

Aquele que tomba no chão

Aquele que mija

Que porcamente cospe no chão.

 

Aquele filho da puta

Que te ameaça com palavras

Que em vez de te atirar com pedras…

Atira-te com a tabuleta que brinca no portão

CUIDADO COM O POETA: ele MORDE.

Aquele que te ladra

Aquele que finge ser o teu fiel cão

Que deixou de ser cão

(DIZEM: dizem que agora é um estorninho com asas de nylon)

Aquele que cospe

Que mija

No chão.

 

Aquele que quer ser como tu

Um (tu) diferente

Que em vez de ser CÃO

É… Cãozão

É boi de primeira

Alface de lábios pincelados de vergonha

Aquele que morre

Aquele que inventa o cão

Na voz de cão

O cão que escreve

O cão que fala

Que ladra

Ladra

Ladra

Cão. Cabrão. Colhão. Chão.

 

Toca o telefone

É do trezentos e quatro

Terceiro direito

Uma janela virada para o sol

Outra janela virada para a morgue

Um cão.

Cão.

CUIDADO COM O POETA: ele MORDE.

Aquele que te ladra

Aquele que se alicerça em ti

Que te come

E enquanto o poeta não MORDE

E em cada filho da puta

Daquele que morde

Deixa de morder…

E

 

CUIDADO COM O POETA: ele MORDE.

 

 

 

Alijó, 30/03/2023

Francisco

O último cigarro de prata

 Peço ao meu último cigarro

(banhado a prata e com as insígnias: L&F)

Peço ao meu último cigarro,

Travestido de bala,

Que antes de perfurar o meu esqueleto de sono,

Faça com que a madrugada se pincele de noite,

Escura,

Fria,

Cinzenta,

E muito fria

E muito cinzenta e muito escura...

E muito fria.

 

Peço ao meu último cigarro

(após Deus ter desertado da Armada)

Que me traga os fósforos,

As palavras das cinzas dos livros entre névoas de medo

E outras tantas palavras,

Palavras de merda,

Palavras de Deus,

Homem integro,

Homem da farra…

Palavras

Na palavra.

 

Se nascer menino…

Será trapezista,

Se nascer menina…

Será Deusa das palavras & Afins da madrugada, Limitada…

Com sede na Rua do Alegrim,

Trezentos e quatro…

Mil e quinhentos – trezentos e dois…

Lisboa.

 

 

 

 

Alijó, 30/03/2023

Francisco

quarta-feira, 29 de março de 2023

Livro

 Em cada livro

Há um sorriso escondido,

Em cada livro,

Habita um beijo prometido,

Em cada livro, que leio, que escrevo…

Há uma manhã que não se cansa de acordar,

Uma noite em brincadeira,

Uma noite em luar,

Em cada livro,

Um poema,

Um texto para amar…

 

 

 

Bragança, 29/03/2023

Francisco

terça-feira, 28 de março de 2023

O fogo

 Ardem nesta fogueira sem nome,

Os sonhos,

Ardem nesta fogueira imunda,

Todas as palavras

E todos os luares,

 

Ardem nesta fogueira que transporto no peito

Todos os silêncios

E todas as madrugadas,

 

Ardem,

Dentro de mim,

Todos os rios

E todos os mares…

E todos os barcos,

 

Ardem

Todas as flores da Primavera,

Todos os horários desmedidos…

Ardem as canções

E os poemas…

E ardem as manhãs ensonadas…

E os poemas sofridos.

 

 

 

Alijó, 28/03/2023

Francisco

segunda-feira, 27 de março de 2023

O cálice de cicuta

 Bebo o cálice de cicuta

Peço ao diabo que coloque mais lenha na fogueira

Escrevo a última carta

Puxo de um cigarro

Desenho nos lábios da paixão

A forca

Depois

Recebo a visita do criador

Quer que eu me transforme em árvore

Digo-lhe que não me apetece

Digo-lhe que vá para o caralho…

 

Sento-me à porta do cemitério

E conto os barcos que passam

Desenho na mão os barcos que passam

E os barcos que choram

E de todos eles…

Sinto a falta do meu pequeno barco a motor

Que colocava numa pequena poça… junto ao mar

E passava as tardes em círculos

Toda a tarde

Em círculos

 

Termino o cigarro

Ainda respiro

Graças a Deus

Levanto-me da cadeira onde me sentava

Em frente ao cemitério…

E começo a escrever no sorriso da noite

Enquanto a noite ainda me sorri

Enquanto a noite…

É noite

 

Depois…

Depois sei que a noite se vai travestir de puta

Que a noite vai correr pelas ruas de Lisboa

Que a noite se vende por um cigarro…

E que o magala de ontem

É o magala de hoje

Que o magala de ontem

Fode o magala de hoje

E que todos os barcos de ontem

São a sucata de hoje

Que os miúdos de ontem

Hoje

Alguns

São assassinos

Bêbados e drogados

Putas e travestis…

 

Bebo o cálice de cicuta

Peço ao diabo que coloque mais lenha na fogueira

Escrevo a última carta

Puxo de um cigarro

E finalmente oiço a voz do silêncio

Pego na espada que transporto junto ao peito

Olho-a

Ela olha-me

E dou-me conta…

Que o triciclo com que eu brincava

Hoje é um monstro

De madeira

Tem olhos azuis

E come todos os magalas que brincaram junto ao Tejo.

 

 

 

Alijó, 27/03/2023

Francisco

Os demónios

 Se Deus quiser

Todas as estrelas tombarão sobre o mar,

Todas as nuvens se vestirão de negro,

Se Deus quiser

Deixará de haver luar,

Se Deus quiser

O silêncio dará lugar ao caos…

E viveremos todos na desordem.

 

Se Deus quiser

Seremos todos pobres,

Esfomeados,

Poetas vagabundos…

Drogados.

 

Se Deus quiser

Acordarão do Inferno todos os demónios

E todos os mortos…

Tão belo, Francisco…

Tão belo todos os mortos retomarem à vida,

Uns bons,

Outros…

Outros filhos da puta,

Como os bons,

Também os filhos da puta têm o direito à vida…

À puta da vida.

 

Se Deus quiser

Morrerão todas as flores,

E todas as flores deixarão de ter perfume…

Cheiram tão mal…

As flores…

São imundas,

Não tomam banho.

 

Se Deus quiser

Morrerão todas as árvores

E todos os pássaros;

Tão parvos os pássaros…

E tão estúpidas,

Tão estúpidas as árvores.

 

Se Deus quiser

Pode desaparecer,

Ir embora,

Esconder-se dentro de um cubo de vidro…

E já agora,

Tal como as flores…

Que tome um banhinho de sais…

E desapareça;

Desapareça.

 

 

Alijó, 27/03/2023

Francisco

Despedida

 Despeço-me de ti, meu amor,

Enquanto o sono não me consome,

Enquanto o sono não me come…

Como comeu o meu pai,

Como comeu a minha mãe.

 

Despeço-me de ti

E das flores do nosso jardim,

Despeço-me das tardes junto ao mar,

Das noites debaixo do luar,

Despeço-me de ti, meu amor,

Enquanto o sono não me consome…

Enquanto o sono não me come.

 

Despeço-me dos livros,

Das telas e dos livros…

Que já devia ter queimado,

Tal como das minhas palavras,

Que me despeço,

Entre abraços e pingos de alegria,

Porque meu amor, a despedida…

A despedida é alegria.

 

Despeço-me de todas as coisas,

Que de belas,

Nada têm…

O que tem de belo uma flor,

Um poema,

Ou uma simples tela?

De belo nada têm…

Apenas têm sofrimento,

Dor…

E noites de insónia.

 

 

 

Alijó, 27/03/2023

Francisco

Carta de despedida de uma doente oncológica em fase terminal

 Algures, 27 de Março de 2023,


Meu querido,

 

Provavelmente, quando leres estas minhas palavras, já não estarei entre os vivos e, todo o meu sofrimento terá terminado.

A Francisca, desculpa, meu querido, desculpa… pois, não sabes quem é a Francisca.

A Francisca, a minha filha, já está no terceiro ano de engenharia computacional (não sei a quem ela sai)… vê lá, como o tempo passa, como o tempo voa. Como o tempo voa… meu grande amor.

Sei que brevemente irei partir, sem que te tenha contado toda a verdade, também não sei a razão de te ter ocultado (sim, meu querido, tu, tu és o pai biológico da Francisca), e só agora, que vejo o final do túnel e a luz… é que ganhei coragem de lhe contar; ficou furiosa comigo e julgo que me vai odiar eternamente; tal como tu, talvez… me irás odiar eternamente, mesmo sabendo que tu, meu grande amor, és incapaz de odiar o que quer que seja. Preferes sofrer de que odiar.

E sabes, meu querido, o meu maior receio é que ela nunca venha a procurar-te, gostar ou amar-te; tão teimosa que ela é, mas tal como tu, que és incapaz de dizer a alguém que a amas ou gostas, também ela, também ela é assim…

Peço-te perdão, por tudo.

Recordo os livros que líamos em conjunto, recordo as palavras que me escrevias, e sim, meu querido, as tuas palavras faziam-me sentir tão especial, tão segura… tão… tão amada como nunca o fui. A minha vida foi um erro, um erro que paguei muito caro e que talvez esta maldita doença seja o castigo de Deus por todo o mal que te fiz.

A nossa filha está impossível. Quase não quer falar comigo, não sei se é devido ao meu estado ou ao ter que encarar a verdade; que tu és o pai dela.

Lamento, mas a Francisca nem o teu nome quer ouvir…

Mas peço-te, meu querido, peço-te que tentes conversar com ela, e aviso-te já que não será fácil, pois além de teimosa, ela é também muito orgulhosa; a quem é que ela sairá!

Se eu tivesse forças, juro-te pelo todo o amor que sempre tive para contigo… juro-te que me suicidava, mas já nem forças tenho, neste momento sou um vegetal à espera de voar… voar em direcção ao mar, ao mar que tu tanto amas.

Perdoa-me meu querido, perdoa-me por tudo.

 

Desta que nunca te esqueceu,

 

 

Até um dia, meu querido.

 

(ficção)

domingo, 26 de março de 2023

Retracto

 Sinto tanto a tua falta,

E odeio olhar o teu retracto,

 

A vida é construída de sombras,

Momentos invisíveis que se vão perdendo no tempo,

Às vezes, temos tudo aquilo que queremos da vida…

Outras vezes,

A vida nos dá tudo aquilo que não queremos,

 

E já não suporto olhar-te sobre esse móvel,

Como se estives a observar-me,

Como se estives a olhar-me…

Como sempre me olhaste,

 

Não suporto,

Olhar-te com esse olhar de dor,

Em lágrimas…

Às vezes, apetece-me esconder o teu retracto,

Dentro de uma caixa…

Outras vezes,

Sento-me numa cadeira,

Oiço Pink Floyd…

E talvez acredite, que um dia, qualquer dia…

Me digas; estou aqui, meu querido!

Estou aqui…

 

 

 

Alijó, 26/03/2023

Francisco

Ausência

 Habito neste corpo sem espaço,

Deste corpo ensanguentado

Quando a Primavera promete um abraço…

Neste corpo ausentado.

 

Habito dentro deste mar

Que transporto na minha mão,

Habito em todas as noites de luar,

Das noites onde procuro o pão.

 

Habito neste corpo sem nome,

Deste corpo sem identidade…

Habito dentro deste corpo em fome…

 

Da fome das palavras que deixarei de escrever.

Habito nesta ausência que traz a saudade…

Na saudade de morrer.

 

 

 

Alijó, 26/03/2023

Francisco

sábado, 25 de março de 2023

Os pequenos sorrisos da infância

 Semeávamos as palavras nas lágrimas do Tejo, enquanto junto a nós, um velho cacilheiro se perdia de amores pelo primeiro raio de Sol da manhã, e em cada punhado de palavras que lançávamos ao rio, um pedacinho de silêncio partia em direcção ao mar,

Tínhamos dentro de nós todos os sonhos, tínhamos dentro de nós todas as brincadeiras de um novo dia que brevemente começaria, que brevemente partiria, também ele, como partiram todos os sorrisos que conhecíamos.

Abraçava-a, pegava-lhe no cabelo de Primavera e sabia que do outro lado do rio, que do outro lado do rio havia um barco com mãos de prata e lábios de sangue; era o barco que me trouxe do outro lado do Oceano.

Uma criança chorava. Uma criança desiludida com os dias e com as noites e com os machimbombos…

O Tejo sabia que um dia, que um dia o meu corpo seria absorvido pelas suas mãos, e desde então, procuram nas suas águas um esqueleto sem nome, um esqueleto com asas, um esqueleto de vidro…

Semeávamos as palavras nas lágrimas do Tejo, enquanto junto a nós, um velho cacilheiro se perdia de amores pelo primeiro raio de Sol da manhã, os cigarros entre pequenas pausas para o café, levitavam e desapareciam como pássaros depois da tempestade, e nunca soube o nome daquela tempestade; como deixei de saber o nome das coisas, de todas as coisas.

Bebíamos pequenos tragos de uísque, dançávamos sobre a relva de Belém, à nossa volta, outros esqueletos preenchiam a tarde com piqueniques e outras coisas banais, fumávamos e bebíamos, e voávamos sobre uma Lisboa em construção,

Porque me mataram os esqueletos de prata?

Os barcos de regresso, diziam-nos que amanhã era o futuro, pequenos sorrisos num espelhos com janela para a Calçada da Ajuda, e ela, e ela percebia, aos poucos, que o meu esqueleto nunca mais seria encontrado naquele rio, naquele lugar, naquela cidade.

Hoje, hoje sou procurado pelas sombras daquela cidade, daquelas ruas, hoje sou maias uma das sombras que habitam os jardins onde crescem os pequenos sorrisos da infância.

Ergui-me da cama, abri a janela, puxei por um cigarro e ouvi da boca dela:

Vou embora.

Continuei a fumar, continuei a olhar o Tejo… até que ouvi o som desengonçado e perro da porta do quarto a fechar-se, como se fosse o fecho da tampa do meu caixão.

Depois, depois fechei a janela, escondi-me debaixo do chuveiro, e algumas horas depois, quando já de saída do quarto e chegando à rua, percebi que durante a noite alguém tinha mudado o nome daquela rua; e fiquei sem saber onde estava.

Apenas fiquei com o perfume de um rio, de um rio que pouco a pouco… morre dentro de mim, como morrem todas as coisas em que toco.

 

 

 

 

Alijó, 25/03/2023

Francisco

Mãos que escreviam palavras

 Nasci para sofrer

Nasci para fazer sofrer os outros.

Amei muito.

Fui amado.

Fui mais amado de que amei

Chorei

Fiz chorar.

 

Tive sonhos.

Muitos sonhos.

Hoje…

Hoje apenas espero que o vento me leve,

Que o vento me transporte para a derradeira viagem que me espera…

A longínqua viagem,

Sem destino,

Sem…

Sem o meu corpo.

 

Tive tudo.

Não tenho nada.

Tive o céu e a terra,

Tive poesia nas minhas veias…

Tive palavras,

Muitas palavras,

Livros,

Escrevi livros…

E hoje não tenho nada,

Não tenho as palavras,

Não tenho as mãos que escreviam as palavras…

 

Nem tenho mais livros para escrever.

Amei muito.

Fui muito mais amado de que amei…

Sofri…

Fiz sofrer todos aqueles que me amaram…

Farei sofrer todos aqueles que me venham a amar…

Nasci para sofrer

Nasci para fazer sofrer os outros.

Amei muito.

Fui amado.

Fui mais amado de que amei

Chorei

Fiz chorar…

 

 

 

 

Alijó, 25/03/2023

Francisco