quarta-feira, 27 de abril de 2016

Os vidros da inocência


Tenho um esqueleto amaldiçoado; sinto-o quando os ombros se cruzam na madrugada.

Tenho a certeza que amanhã serei capaz de voar sobre os sobreiros da tempestade,

Como um pássaro enlouquecido,

Como uma nuvem sem destino

Quando o poço da tristeza inventa desenhos na areia da insónia.

Pego nos cigarros amachucados pelo prazer,

Pego no livro estacionado sobre a minha secretária,

Que me espera, todas as noites, antes de adormecer.

E este madito esqueleto não se cansa de ranger,

Sei que todas as flores do meu jardim não me pertencem,

São alugadas, algumas, e outras, e outras emprestadas pela vizinha do terceiro direito,

Estão à minha guarda como uma criança entre círculos e palavras no recreio da escola,

Os vidros da inocência que parti com uma bola desenfreada,

As pedras que atirei aos vidros substituindo a bola desenfreada,

O silêncio da sebenta escondida na pasta,

A bata que trazia nunca regressava com todos os botões,

Os joelhos rasgados,

Os cotovelos ensanguentados…

Mas era feliz assim, como hoje sou feliz assim.

Com o esqueleto amaldiçoado,

Transparente verniz que cobre a minha pele,

Poema que deito no lixo porque não gosto dele,

Este ainda não o sei,

Talvez no final vá fazer companhia ao túmulo dos Deuses Sagrados,

Caderno pérfido, esferográfica mais parecendo uma enxada… e ao longe o Douro encurvado nas coxas da montanha,

Desprezo-me,

Não me apetece cortar o cabelo, não me apetece desfazer a barba…

Dizem que sou um vagabundo,

E sou-o.

Uma cidade esvairada, uma campânula nas festas de aldeia,

Tenho um esqueleto amaldiçoado, é pobre, é velho, e mesmo assim tenho de o transportar de aqui para ali e de ali para aqui,

Loucos,

Loucas,

A boca quando dos lábios brota a Primavera,

Quando o fogo incendeia o meu corpo e só o mar consegue sossegar-me deste esconderijo nojento, obsceno, ridículo,

Tenho noites assim, tenho noites desgovernadas pelas fotografias da minha infância,

E apenas sinto os barcos a passearem-se junto a mim,

O meu cão ladra,

Não me apetece cortar o cabelo e desfazer a barba…

Porque sou um vagabundo que tem um esqueleto amaldiçoado.

 

 

Francisco Luís Fontinha

quarta-feira, 27 de Abril de 2016

segunda-feira, 25 de abril de 2016





Não regresso


Uma bala de saudade atravessa o meu peito.

A espingarda da liberdade

Poisada sobre a ferrugem ténue da madrugada,

As palavras escrevem-se numa branca parede

De ardósia invisível,

Longínqua como a esperança de regressar…

 

 

Francisco Luís Fontinha

segunda-feira, 25 de Abril de 2016

domingo, 24 de abril de 2016

O miserável


Sou um miserável.

Não tenho mulher com quem conversar,

Filhos para brincar…

Apenas livros, muitos, hoje recordei pela última vez o teu rosto,

Estas linda, como sempre,

Felicitavas-te com o miserável que sou eu,

Acredita, meu amor,

Queria ser uma abelha,

Livre,

Voar sobre os canaviais do desejo,

Como um miserável magoado pelo tempo,

Estou velho, só, apenas com alguns muitos livros…

Onde está a saudade?

O limiar da ausência,

As finas cortinas do amanhecer voando nos teus lábios.

Sou um miserável,

Não tenho mulher com quem conversar,

Apenas livros, mortos, esqueletos de sangue…

Eu morreria,

Na tua mão.

 

Francisco Luís Fontinha

domingo, 24 de Abril de 2016

sábado, 23 de abril de 2016

A viagem do paquete amordaçado


Os poemas perdidos, a noite incendeia a solidão do corpo enquanto lá fora o silêncio da morte acorda os pedestres rochedos da insónia.

Desço às profundezas do rio, toco na sua boca como se alguém me empurrasse para a escuridão, feliz aquele que vive só, sem ninguém,

Os poemas perdidos que invadem a tarde junto ao mar, lá longe, os sifilíticos segredos da esperança, perdidos, as palavras, os sons e a melódica tempestade dos guizos,

Perdidos.

Os poemas na minha mão caminhando sobre as areias finas do desejo,

Invento crianças que brincam nos quintais de espuma,

Marés de incenso sobre a secretária desarrumada,

Milímetros quadrados de nada, de ninguém, que só os muros da geada conseguem atravessar, tenho pena do coração da Primavera; triste.

Como eu,

Triste

Nos poemas perdidos,

Amanhã renascerá uma estrela no meu peito e o meu corpo transformar-se-á em lâminas de prazer, amanhã terei os poemas perdidos fora do livro, esqueléticos casebres das montanhas de neblina, rios que invadem a cidade e trazem a morte, dos poemas, e dos livros com poemas,

Triste,

Os poemas perdidos quando incendeiam os dedos amachucados pelos cigarros em despedida,

As fotografias dentro de uma caixa de cartão à espera de serem resgatadas pelas palavras dos poemas perdidos, sem ninguém, procuro nela o meu rosto de infância, imagino-me a olhar os barcos entre apitos e partidas, e o medo absorve-me…

Deixo de ver a cidade, dou-me conta em pleno Oceano, sinto o cheiro das gaivotas percorrendo os trilhos do sono, e dos poemas perdidos…

O sangue que corre nas minhas veias, os dias iguais às noites, as noites iguais às sílabas de luar quando olho pelo camarote um finíssimo fio de nylon que me acompanha até ao meu regresso,

Despeço-me dos poemas perdidos,

Despeço-me da aldeia onde nasci e abraço uma Lisboa camuflada pelas âncoras do Tejo, os caixotes em madeira presos aos meus pés, sem nada, apenas tarecos, apenas pequeníssimas coisas sem nexo,

Os poemas perdidos,

Despeço-me,

Deles, delas…

 

Sem perceber que os poemas perdidos nunca existiram em mim.

 

 

Francisco Luís Fontinha

sábado, 23 de Abril de 2016