sábado, 1 de março de 2014

Madame Silêncio

foto de: A&M ART and Photos

Da noite percebia-se o olhar felino de Madame Silêncio, havia um cortinado de fumo que nos separava, ela, ela escondia-se sob o perfume camuflado das areias em flor, havia em nós pergaminhos por descrever, palavras inaudíveis que preferíamos não pronunciar, medos, desejos prometidos e não realizados, sonhos desfeitos, como as folhas que o Outono assassina, da noite a noite, só, sem mais nada, do rádio sentia-se a voz trémula de um poema por escrever, alimentado por desenhos insignificantes, tristes talvez, e sabíamos que tudo não passava de uma noite inventada pelos olhos de uma abelha,
Não entendo o sisudo espelho do nosso quarto, dizia-me quando nos preparávamos para dormir, o corpo dela deixou de fazer sentido, inexistente, apenas uma imagem esquecida num edifício caduco, e quase que do outro lado da rua conseguíamos as âncoras do destino, via-se nos seus seios o peso desmesurado da solidão, e às vezes, eu, fingia dormir, e não dormia, e não sabia o significado de dormir, de sonhar, e eu, eu não sabia porque choram os pássaros em Carvalhais, porque me sentava nas margens do Tejo a imaginar palavras no sombreado da preia-mar,
Da noite em ti,
Eu só, ao teu lado, eu só, sem ti, porque o teu corpo era uma réstia de luz que quando abria a janela..., ele desaparecia, o fumo separava-nos, e éramos todas as noites invadidos por sussurros gritos da vizinha do segundo esquerdo,
Os nossos vizinhos constantemente a fazer amor, dizia-me, eu calado, eu
Silêncio,
E sabíamos que tudo não passava de uma noite inventada pelos olhos de uma abelha, e que essa abelha nunca, nunca nos pertenceu, algures tínhamos deixado as mãos no rosto de um gladíolo, havia cheiros, barcos em movimento, corpos transversos, e que nunca percebemos a razão de existirem,
Silêncio,
Eu calado, eu uma rocha ancorada ao púbis dos inanimados marinheiros quando saíam dos bares de Alcântara, os pedacinhos de sono estampados no paralelo agoniado, a cerveja e a vodka davam para alimentar meia dúzia de veleiros, sofríamos a angustia das varandas como fotografias a preto-e-branco, e em nós o sexo penetrava-nos como se fossemos mercadores ambulantes, beijava-se, e amavam-se, e
Madame Silêncio, ela embrulhada num esqueleto esquizofrénico, e havia um cortinado de fumo que nos separava, ela, ela escondia-se sob o perfume camuflado das areias em flor, havia em nós pergaminhos por descrever, palavras inaudíveis que preferíamos não pronunciar, medos, desejos prometidos e não realizados, sonhos desfeitos, como as folhas que o Outono assassina,
Desejosa de
Partir?
E partiu sem deixar um sorriso,
E desejosa, ela, que todas as folhas que o Outono assassina deixassem de ser folhas assassinadas, livres, como dever ser o mar e a paixão.


(não revisto – ficção)
Francisco Luís Fontinha – Alijó
Sábado, 1 de Março de 2014

Páginas de tristeza

foto de: A&M ART and Photos

São páginas de tristeza,
folheio os teus dedos no meu corpo ausente da madrugada sem janela,
existo, talvez... porque sinto o perfume da tua dor,
são lágrimas de papel que me fazem feliz,
e durmo pensando que estou debaixo de uma nuvem de porcelana,
velhos cacos, alguns grãos de solidão...
são páginas tuas presas à minha mão,
um livro que morre,
o escritor entranha-se no esqueleto vadio do poeta,
e este, este acredita nas infinitas flores dos jardins do nada,
uma montanha de silêncio corre em direcção à cidade do Adeus,
a ponte que me transportava para a outra margem, a casa da insónia,

(deixou de viver, morreu, caiu... simplesmente ruiu como pedaços de saliva na boca do Amor)

Onde está neste momento a casa da insónia?
nos teus olhos... acredito,
nos teus doces lábios de cereja envergonhada?
ou... nunca existiu uma casa da insónia?

São páginas de tristeza,
corações despedaçados como pedras atiradas por uma criança para o rio da morte,
dos lençóis teus, o meu peito pintado com holofotes de néon que a cidade do Adeus engoliu,
comeu,
alimenta-se de mim como sempre se alimentaram as árvores e os pássaros e os telhados de zinco,
sinto-me um analfabeto folheando pedras de xisto,
socalcos descem o meu corpo e sei que há um cais onde fundear o meu sorriso,
deixei de sorrir?
porque o faço se a vida é um circo com palhaços, carroceis e roulotes de cartolina...
sem pernas, sem braços... como os velhos guindastes do porto de Luanda,
folheio-te sabendo que pouco mais há que folhear,
e mesmo assim, são páginas de tristeza, as tuas...


Francisco Luís Fontinha – Alijó
Sábado, 1 de Março de 2014

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Meninas de trapos

foto de: A&M ART and Photos

Perdidamente só dentro das quatro colunas imaginárias de granito envergonhado,
habito no medo pelo medo, de... medo do medo, com medo, não sabendo que sou um transeunte desgovernado,
vivo e desabito a vida de ser sem o ser,
não percebo porque voam os corpos com asas de papel saudade,
inventando Oceanos de algodão nos lábios das meninas de trapos,
bonecas com sabor a infância e que trazem nos olhos a esperança...
esperança de... não terem esperança porque a esperança deixou de fumegar na lareira do desejo,
morreu o Amor e morreram todos os poemas de Amor,
morreram os homem da caneta de tinta permanente,
tenho uma na minha mão (de José António Tenente),
cansado de mim e das tuas palavras com sabor a argila negra,
permanente só, só... só dento do meu eu...


Francisco Luís Fontinha – Alijó
Sexta-feira, 28 de Fevereiro de 2014