foto de: A&M ART and Photos
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Da noite percebia-se o olhar felino de Madame
Silêncio, havia um cortinado de fumo que nos separava, ela, ela
escondia-se sob o perfume camuflado das areias em flor, havia em nós
pergaminhos por descrever, palavras inaudíveis que preferíamos não
pronunciar, medos, desejos prometidos e não realizados, sonhos
desfeitos, como as folhas que o Outono assassina, da noite a noite,
só, sem mais nada, do rádio sentia-se a voz trémula de um poema
por escrever, alimentado por desenhos insignificantes, tristes
talvez, e sabíamos que tudo não passava de uma noite inventada
pelos olhos de uma abelha,
Não entendo o sisudo espelho do nosso quarto,
dizia-me quando nos preparávamos para dormir, o corpo dela deixou de
fazer sentido, inexistente, apenas uma imagem esquecida num edifício
caduco, e quase que do outro lado da rua conseguíamos as âncoras do
destino, via-se nos seus seios o peso desmesurado da solidão, e às
vezes, eu, fingia dormir, e não dormia, e não sabia o significado
de dormir, de sonhar, e eu, eu não sabia porque choram os pássaros
em Carvalhais, porque me sentava nas margens do Tejo a imaginar
palavras no sombreado da preia-mar,
Da noite em ti,
Eu só, ao teu lado, eu só, sem ti, porque o teu
corpo era uma réstia de luz que quando abria a janela..., ele
desaparecia, o fumo separava-nos, e éramos todas as noites invadidos
por sussurros gritos da vizinha do segundo esquerdo,
Os nossos vizinhos constantemente a fazer amor,
dizia-me, eu calado, eu
Silêncio,
E sabíamos que tudo não passava de uma noite
inventada pelos olhos de uma abelha, e que essa abelha nunca, nunca
nos pertenceu, algures tínhamos deixado as mãos no rosto de um
gladíolo, havia cheiros, barcos em movimento, corpos transversos, e
que nunca percebemos a razão de existirem,
Silêncio,
Eu calado, eu uma rocha ancorada ao púbis dos
inanimados marinheiros quando saíam dos bares de Alcântara, os
pedacinhos de sono estampados no paralelo agoniado, a cerveja e a
vodka davam para alimentar meia dúzia de veleiros, sofríamos a
angustia das varandas como fotografias a preto-e-branco, e em nós o
sexo penetrava-nos como se fossemos mercadores ambulantes,
beijava-se, e amavam-se, e
Madame Silêncio, ela embrulhada num esqueleto
esquizofrénico, e havia um cortinado de fumo que nos separava, ela,
ela escondia-se sob o perfume camuflado das areias em flor, havia em
nós pergaminhos por descrever, palavras inaudíveis que preferíamos
não pronunciar, medos, desejos prometidos e não realizados, sonhos
desfeitos, como as folhas que o Outono assassina,
Desejosa de
Partir?
E partiu sem deixar um sorriso,
E desejosa, ela, que todas as folhas que o Outono
assassina deixassem de ser folhas assassinadas, livres, como dever
ser o mar e a paixão.
(não revisto – ficção)
Francisco Luís Fontinha – Alijó
Sábado, 1 de Março de 2014