terça-feira, 9 de maio de 2023

O livro da insónia

 O que resta de mim,

Um amontoado de ossos,

Sem nome,

Pedaços de nada,

O que resta de mim,

Depois de tantas tempestades,

Silêncios…

E mares;

Alguns, navegados.

 

O que resta de mim,

Depois que o silêncio se travestiu de mendigo,

Quando neste pequeno papel,

Escrevo-te aquilo que poderia ser uma carta de despedida…

 

Mas não me despeço

E vou andar por aí…

O que resta deste corpo em constante baloiço,

O que resta de mim,

Depois de o vento levar o meu cabelo,

As mãos com que afago o teu cabelo,

E os meus lábios…

Com que desenho nos teus lábios,

O beijo.

 

O que resta deste miúdo,

Que transportava uns simples calções

E umas sandálias em couro…

 

O que resta de mim,

O que resta de mim…

Um amontoado de ossos,

Sem nome,

Pedaços de nada,

E algumas palavras…

 

O que resta de mim

E da minha terra,

Onde o sangue jorra por entre o capim,

O que resta de mim

E da minha terra,

Quando a chuva cai…

E aquele cheiro inconfundível se ergue até ao céu,

 

O que resta de mim,

Poema do meu peito,

Palavra que respiro…

E em cada final de dia,

Vomito a solidão das noites aprisionado,

O que resta deste louco poeta,

O que resta de mim,

Deste pobre pintor…

O que resta de mim,

Quando Deus…

Não quer que reste nada.

 

 

 

Alijó, 09/05/2023

Francisco Luís Fontinha

Liberdade

 (aos meus pais e ao meu grande amigo Doutor Luís Castelo Branco)

 

 

Regressava a casa

Travestido de farrapos,

E havia sempre quem me procurava,

E havia sempre quem me levantava

 

Do pavimento térreo da miséria.

Cansei-me de ser um farrapo,

Cansei-me das noites em voos livres em direcção ao nada…

Vesti a minha melhor roupa…

 

Ergui-me do chão

Acreditando que um dia,

Qualquer dia,

Poderia ser livre,

 

Hoje não sou farrapo,

Hoje já não tenho quem me procurava

E me levantava do chão… (a minha mãe)

Mas hoje, tenho a liberdade,

 

Hoje regresso a casa de sorriso nos lábios,

Hoje não procuro os esconderijos da noite,

Hoje, meu Deus…

Hoje sou aquilo que em nove de Maio de mil novecentos e noventa e quatro… não acreditava ser.

 

 

 

Bragança, 9/05/2023

Francisco Luís Fontinha

segunda-feira, 8 de maio de 2023

Esconderijo

 Escondo-me na tua mão de oiro amanhecer,

Enquanto lá fora, uma pequena réstia de sono foge de mim.

Procuro nos teus lábios o teu doce olhar,

Sabendo que a chuva brevemente poisará no teu cabelo.

Escondo-me na tua mão…

Ao primeiro beijo da manhã,

Quando o Deus criador liga o interruptor da paixão,

E eu, olho-te incessantemente no espelho da madrugada,

Do silêncio que me abraça, ao silêncio que me deseja…

O meu esconderijo.

 

Escrevo-te enquanto ainda tenho forças para o fazer,

Não porque esteja cansado, ou doente, ou coisa alguma…

Mas vou-te escrevendo parvoíces,

Vou pincelando numa tela fria e nua…

Outras tantas parvoíces;

Diria que sou um parvo,

Um parvo que escreve parvoíces,

Um pequeno parvo que pincela numa tela fria e nua…

Parvoíces.

Eu, o eterno parvo das noites de insónia.

 

 

 

 

Alijó, 08/05/2023

Francisco Luís Fontinha

Para venda

 

Paixão - Óleo s/tela – 70cm x 100cm – Em exposição no Hotel Ribadouro – Alijó

domingo, 7 de maio de 2023

De onde te escrevo, pedra cinzenta

 Escondíamos pedacinhos da noite dentro da algibeira fria e escura. O autocarro descrevia pequenos círculos de sono à volta da mesa da cozinha, sentados, estavam, eu, o outro eu e ainda aquele gajo que detesto tanto, um eu do outro eu.

A gaja da mini-saia em poéticas seduções para com o eu do outro eu, e eu claro, olhava-os, e confesso que fartinho daquela situação; quadro a óleo pintado sobre tela, para vender, para oferecer… ou para queimar.

Que se fodam; façam-no como quiserem.

Erguiam-se da noite todos os guindastes da paixão, em alegres abraços, ele, apressadamente, subia as escadas em direcção ao sótão, depois, ela, também em passo apressado, seguia-o, duas pancadinhas na porta…

E eu, nada.

Via-os. Os dois eus parvalhões.

E eu, nada.

Diga-se que nunca tive muito jeito para seduzir seja o que for, muito menos as mulheres.

Siga.

Amanhã não temos comboio, estamos em greve.

E um direito é um direito.

Escondíamos pedacinhos da noite dentro da algibeira fria e escura, lá fora, os transeuntes com mobilidade reduzida, quase todos os que habitavam naquela zona, eram atropelados pelo comboio das cinco, e do outro eu, apenas recebia bilhetinhos de desculpas e que qualquer dia,

Regressaria,

Até hoje, nada.

E eu, infeliz como os portões de entrada de um cemitério, porque todos os portões de entrada dos cemitérios, são tristes,

Todos eles.

Dançávamos debaixo do vento e abraçávamo-nos às primeiras lágrimas de chuva da madrugada, depois éramos expulsos do paraíso,

RUA.

E íamos dançando ao som do silêncio.

O meu pai quando morreu, ainda acreditava que tinha andado na guerra colonial; e claro, tal como eu,

Nada.

Nunca o serei como um dia ele foi, tão pouco irei ser aquilo que durante o dia me dizem para fazer, e eu,

Nada,

Não quero fazer nada.

Claro que quando rebentou a guerra em Angola, o meu pai foi mobilizado para fazer transportes para o mato, visto ainda não terem chegado as tropas,

E claro,

Ele acreditava que foi militar,

Ao longe filho,

O quê, pai?

Os homens da glória, transportam os crucifixos da madrugada aos ombros, e depois,

Nada,

Ou quase anda,

Mas alguém consegue imaginar o senhor Fernando de G3 ao ombro?

Tal pai tal filho,

Ouvia-os eu enquanto descia a caçada em direcção ao rio.

Não nasci para isso.

G3 ao ombro…, nunca foi a minha praia…, eu sou mais de plantas aromáticas,

Até que regressou o sono,

E?

Nada.

Claro, que absolutamente nada.

Zero, meu amor.

Zero.

Olha, meu amor, contaram-me hoje, tu acreditas, tu acreditas que um cacto se apaixonou por uma abelha e dessa união nasceu a flor mais bela…

O mar, mãe, o mar…

O que tem o mar, Francisco?

Sei lá mãe…

Apeteceu-me hoje!

E eu aqui sentado, o único eu com juízo dentro desta casa que é o meu cérebro, a escrever poemas e a escrever textos… e a desenhar,

Tudo isso,

Para a minha amada.

E eu que nunca entendi muito bem essa coisas da mulher… estranha mulher que habita em cada uma das mulheres; as que são livres e as que são escravas; do amor.)

Fugi do quartel da Ajuda.

Um certo dia, ia tão bem-disposto que,

Chego a Santa Apolónia, sete da manhã, pensei, pensei, eu vou, eu não vou…

Não fui.

Ao final da tarde, o saudoso guarda Saraiva, amigo pessoal, meu e dos meus pais, bate à porta, a minha mãe abre,

E ele,

Onde está o Luís?

A minha mãe, com coração de mãe,

Aos soluços,

Aconteceu alguma coisa?

O Luís ainda não apareceu no quartel,

Coitada de uma mãe,

Perdoa tu,

Claro,

Filho é filho,

Não os tenho, mas é isso.

(e que se fodam todos os filhos que tratam mal os pais e todos os pais que tratam mal os filhos)

E que tive azar.

Fui parar ao pelotão número cinco de cavalaria, olha meu amor,

Uma loucura,

Apenas a vassoura e o balde não fumavam coisas estranhas e bebiam coisas estranhas,

Todos os outros,

Nós e o dos outros,

Formados e perfilados e cigarro imaginário na boca,

Depois,

Tombava no pavimento térreo como se fosse a pedra onde ainda hoje me sento; a minha pedra cinzenta e onde guardo todos os meus segredos,

De onde te escrevo todas as noites,

Meu amor.

De onde te escrevo.

 

 

 

Alijó, 07/05/2023

Francisco Luís Fontinha

Esse corpo

 Esse corpo que é meu,

Onde escrevo os poemas que a manhã me dá,

Onde desenho o silêncio que a manhã me rouba,

Esse corpo

Que é o teu,

Meu amor.

 

Esse corpo que é meu,

Onde guardo os poemas que a manhã me dá,

Onde escondo todo o silêncio…

Antes de chegar a manhã e mo roubar,

Esse corpo

Que é o teu,

Meu amor.

 

Esse corpo que é teu,

Onde escondo todas as flores e todas as palavras…

Que a manhã me dá,

Que a manhã me rouba…

Esse corpo

Que é o teu,

Meu amor.

 

 

Alijó, 07/05/2023

Francisco Luís Fontinha

sábado, 6 de maio de 2023

Meu amigo

 Tragam-me as flores

Deste Universo frio e escuro,

Tragam-me a luz,

A luz deste Universo frio e escuro,

Tirem as amarras deste Universo frio e escuro…

E tragam-me toda a paixão,

Deste Universo frio escuro.

 

Tão triste, meu amigo,

Quando vemos a manhã a suicidar-se na sombra de uma árvore,

E eu, e eu nada posso fazer,

A não ser,

Pedir ajuda,

SOCORRO…

E nunca sei se peço ajuda para a sombra da árvore,

Ou se peço ajuda para a manhã…

Mas a manhã,

Brevemente,

Estará feliz e contente;

Deixará de sofrer.

 

E enquanto não me trazem as flores deste Universo,

Faço contas de cabeça,

E sabes meu amigo,

Já nem sei fazer contas…

Dito isto,

Acho que já nem sei fazer anda,

A não ser,

Fazer sofrer…

 

E toda esta merda que te escrevo,

São os meus gritos de silêncio,

São as pedras da minha infância…

Que quase sempre,

Com elas fodia os vidros da minha escola.

 

E vê tu, meu amigo…

Até a minha escola morreu;

Morreram todos aqueles,

Os nossos e os outros,

Uns morreram de tudo,

Outros…

Morreram de nada,

E entre o tudo e o nada,

Morro, parto deste silêncio em escadaria

Em direcção ao céu.

 

E penso, muito, meu amigo,

Penso quando conversávamos de tudo e de nada…

E dentro dos círculos que desenhaste no céu,

Escondo toda a minha tristeza,

Toda a minha loucura…

De estar vivo sem o merecer.

E, no entanto, penso em ti.

E escrevo.

Escrevo porquê?

E juro-te, meu grande amigo,

Juro-te que quando me trouxerem as flores do Universo frio e escuro…

Não vou fazer nada;

Absolutamente nada.

 

O que fazer,

Meu amigo,

Quando todas as personagens destes livros,

Todas,

No silêncio da noite,

Se abraçam a mim, todas elas,

Sem que eu consiga fugir e esconder-me junto a ti…

Dentro dos círculos que numa qualquer noite desenhaste no céu…

 

 

 

Alijó, 06/05/2023

Francisco Luís Fontinha