Escondíamos pedacinhos da
noite dentro da algibeira fria e escura. O autocarro descrevia pequenos
círculos de sono à volta da mesa da cozinha, sentados, estavam, eu, o outro eu
e ainda aquele gajo que detesto tanto, um eu do outro eu.
A gaja da mini-saia em
poéticas seduções para com o eu do outro eu, e eu claro, olhava-os, e confesso
que fartinho daquela situação; quadro a óleo pintado sobre tela, para vender,
para oferecer… ou para queimar.
Que se fodam; façam-no
como quiserem.
Erguiam-se da noite todos
os guindastes da paixão, em alegres abraços, ele, apressadamente, subia as
escadas em direcção ao sótão, depois, ela, também em passo apressado, seguia-o,
duas pancadinhas na porta…
E eu, nada.
Via-os. Os dois eus
parvalhões.
E eu, nada.
Diga-se que nunca tive
muito jeito para seduzir seja o que for, muito menos as mulheres.
Siga.
Amanhã não temos comboio,
estamos em greve.
E um direito é um
direito.
Escondíamos pedacinhos da
noite dentro da algibeira fria e escura, lá fora, os transeuntes com mobilidade
reduzida, quase todos os que habitavam naquela zona, eram atropelados pelo comboio
das cinco, e do outro eu, apenas recebia bilhetinhos de desculpas e que
qualquer dia,
Regressaria,
Até hoje, nada.
E eu, infeliz como os
portões de entrada de um cemitério, porque todos os portões de entrada dos
cemitérios, são tristes,
Todos eles.
Dançávamos debaixo do
vento e abraçávamo-nos às primeiras lágrimas de chuva da madrugada, depois
éramos expulsos do paraíso,
RUA.
E íamos dançando ao som
do silêncio.
O meu pai quando morreu,
ainda acreditava que tinha andado na guerra colonial; e claro, tal como eu,
Nada.
Nunca o serei como um dia
ele foi, tão pouco irei ser aquilo que durante o dia me dizem para fazer, e eu,
Nada,
Não quero fazer nada.
Claro que quando rebentou
a guerra em Angola, o meu pai foi mobilizado para fazer transportes para o
mato, visto ainda não terem chegado as tropas,
E claro,
Ele acreditava que foi
militar,
Ao longe filho,
O quê, pai?
Os homens da glória,
transportam os crucifixos da madrugada aos ombros, e depois,
Nada,
Ou quase anda,
Mas alguém consegue imaginar
o senhor Fernando de G3 ao ombro?
Tal pai tal filho,
Ouvia-os eu enquanto
descia a caçada em direcção ao rio.
Não nasci para isso.
G3 ao ombro…, nunca foi a
minha praia…, eu sou mais de plantas aromáticas,
Até que regressou o sono,
E?
Nada.
Claro, que absolutamente
nada.
Zero, meu amor.
Zero.
Olha, meu amor,
contaram-me hoje, tu acreditas, tu acreditas que um cacto se apaixonou por uma
abelha e dessa união nasceu a flor mais bela…
O mar, mãe, o mar…
O que tem o mar,
Francisco?
Sei lá mãe…
Apeteceu-me hoje!
E eu aqui sentado, o
único eu com juízo dentro desta casa que é o meu cérebro, a escrever poemas e a
escrever textos… e a desenhar,
Tudo isso,
Para a minha amada.
E eu que nunca entendi muito
bem essa coisas da mulher… estranha mulher que habita em cada uma das mulheres;
as que são livres e as que são escravas; do amor.)
Fugi do quartel da Ajuda.
Um certo dia, ia tão bem-disposto
que,
Chego a Santa Apolónia,
sete da manhã, pensei, pensei, eu vou, eu não vou…
Não fui.
Ao final da tarde, o
saudoso guarda Saraiva, amigo pessoal, meu e dos meus pais, bate à porta, a minha
mãe abre,
E ele,
Onde está o Luís?
A minha mãe, com coração
de mãe,
Aos soluços,
Aconteceu alguma coisa?
O Luís ainda não apareceu
no quartel,
Coitada de uma mãe,
Perdoa tu,
Claro,
Filho é filho,
Não os tenho, mas é isso.
(e que se fodam todos os
filhos que tratam mal os pais e todos os pais que tratam mal os filhos)
E que tive azar.
Fui parar ao pelotão
número cinco de cavalaria, olha meu amor,
Uma loucura,
Apenas a vassoura e o balde
não fumavam coisas estranhas e bebiam coisas estranhas,
Todos os outros,
Nós e o dos outros,
Formados e perfilados e
cigarro imaginário na boca,
Depois,
Tombava no pavimento
térreo como se fosse a pedra onde ainda hoje me sento; a minha pedra cinzenta e
onde guardo todos os meus segredos,
De onde te escrevo todas
as noites,
Meu amor.
De onde te escrevo.
Alijó, 07/05/2023
Francisco Luís Fontinha