domingo, 7 de maio de 2023

De onde te escrevo, pedra cinzenta

 Escondíamos pedacinhos da noite dentro da algibeira fria e escura. O autocarro descrevia pequenos círculos de sono à volta da mesa da cozinha, sentados, estavam, eu, o outro eu e ainda aquele gajo que detesto tanto, um eu do outro eu.

A gaja da mini-saia em poéticas seduções para com o eu do outro eu, e eu claro, olhava-os, e confesso que fartinho daquela situação; quadro a óleo pintado sobre tela, para vender, para oferecer… ou para queimar.

Que se fodam; façam-no como quiserem.

Erguiam-se da noite todos os guindastes da paixão, em alegres abraços, ele, apressadamente, subia as escadas em direcção ao sótão, depois, ela, também em passo apressado, seguia-o, duas pancadinhas na porta…

E eu, nada.

Via-os. Os dois eus parvalhões.

E eu, nada.

Diga-se que nunca tive muito jeito para seduzir seja o que for, muito menos as mulheres.

Siga.

Amanhã não temos comboio, estamos em greve.

E um direito é um direito.

Escondíamos pedacinhos da noite dentro da algibeira fria e escura, lá fora, os transeuntes com mobilidade reduzida, quase todos os que habitavam naquela zona, eram atropelados pelo comboio das cinco, e do outro eu, apenas recebia bilhetinhos de desculpas e que qualquer dia,

Regressaria,

Até hoje, nada.

E eu, infeliz como os portões de entrada de um cemitério, porque todos os portões de entrada dos cemitérios, são tristes,

Todos eles.

Dançávamos debaixo do vento e abraçávamo-nos às primeiras lágrimas de chuva da madrugada, depois éramos expulsos do paraíso,

RUA.

E íamos dançando ao som do silêncio.

O meu pai quando morreu, ainda acreditava que tinha andado na guerra colonial; e claro, tal como eu,

Nada.

Nunca o serei como um dia ele foi, tão pouco irei ser aquilo que durante o dia me dizem para fazer, e eu,

Nada,

Não quero fazer nada.

Claro que quando rebentou a guerra em Angola, o meu pai foi mobilizado para fazer transportes para o mato, visto ainda não terem chegado as tropas,

E claro,

Ele acreditava que foi militar,

Ao longe filho,

O quê, pai?

Os homens da glória, transportam os crucifixos da madrugada aos ombros, e depois,

Nada,

Ou quase anda,

Mas alguém consegue imaginar o senhor Fernando de G3 ao ombro?

Tal pai tal filho,

Ouvia-os eu enquanto descia a caçada em direcção ao rio.

Não nasci para isso.

G3 ao ombro…, nunca foi a minha praia…, eu sou mais de plantas aromáticas,

Até que regressou o sono,

E?

Nada.

Claro, que absolutamente nada.

Zero, meu amor.

Zero.

Olha, meu amor, contaram-me hoje, tu acreditas, tu acreditas que um cacto se apaixonou por uma abelha e dessa união nasceu a flor mais bela…

O mar, mãe, o mar…

O que tem o mar, Francisco?

Sei lá mãe…

Apeteceu-me hoje!

E eu aqui sentado, o único eu com juízo dentro desta casa que é o meu cérebro, a escrever poemas e a escrever textos… e a desenhar,

Tudo isso,

Para a minha amada.

E eu que nunca entendi muito bem essa coisas da mulher… estranha mulher que habita em cada uma das mulheres; as que são livres e as que são escravas; do amor.)

Fugi do quartel da Ajuda.

Um certo dia, ia tão bem-disposto que,

Chego a Santa Apolónia, sete da manhã, pensei, pensei, eu vou, eu não vou…

Não fui.

Ao final da tarde, o saudoso guarda Saraiva, amigo pessoal, meu e dos meus pais, bate à porta, a minha mãe abre,

E ele,

Onde está o Luís?

A minha mãe, com coração de mãe,

Aos soluços,

Aconteceu alguma coisa?

O Luís ainda não apareceu no quartel,

Coitada de uma mãe,

Perdoa tu,

Claro,

Filho é filho,

Não os tenho, mas é isso.

(e que se fodam todos os filhos que tratam mal os pais e todos os pais que tratam mal os filhos)

E que tive azar.

Fui parar ao pelotão número cinco de cavalaria, olha meu amor,

Uma loucura,

Apenas a vassoura e o balde não fumavam coisas estranhas e bebiam coisas estranhas,

Todos os outros,

Nós e o dos outros,

Formados e perfilados e cigarro imaginário na boca,

Depois,

Tombava no pavimento térreo como se fosse a pedra onde ainda hoje me sento; a minha pedra cinzenta e onde guardo todos os meus segredos,

De onde te escrevo todas as noites,

Meu amor.

De onde te escrevo.

 

 

 

Alijó, 07/05/2023

Francisco Luís Fontinha

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