Sabes pai
O irmão que me deste não
gosta de poesia
Não gosta de literatura
Arte
O irmão que me deste
Pertence ao grupo
daqueles que não querem ser nada
Percebes pai
Nada.
E ultimamente sentia pena
Do Álvaro de Campos
Ou do AL Berto,
Mas olha pai
Deixei de ter pena deles
Tenho de me preocupar
comigo
E deixar em paz
Em paz o senhor Álvaro de
Campos e o coitado do AL Berto.
O irmão que me deste
Sabes pai
Detesta Proust
Que lhe leia Proust
E sabes pai
Eu adoro Proust.
O irmão que me deste
Passa as noites numa
taberna
E fica à espera que
regresse o comboio de Santa Apolónia
E sabes pai
O coitado ainda não
percebeu
Que o comboio de Santa
Apolónia nunca chegará ao destino.
E sabes pai
O único destino de
verdade
É sem dúvida a morte
Essa sim
Regressa sempre no
horário certo.
Mas o irmão que me deste
Não quer saber de Proust
Ou da morte
Tão pouco se o comboio
sem destino
Regresse
E se regressar
Tanto faz
Será apenas um comboio
entre outros.
Um comboio estúpido
Um comboio que transporta
as finas lágrimas do Inverno
E sabes pai
Ele não sabe
Ele nunca saberá
Que este comboio não
existe
Que este comboio nunca
existirá…
Tal como os livros de
Proust que ele nunca leu
Detesta
E nem quer ouvir falar.
Mas sabes pai
Não estou chateado por me
dares um irmão
Um irmão que detesta
Proust
Que não quer que eu lhe
leia Proust,
Estou chateado
Muito chateado
Pai
Porque o irmão que me
deste é um cretino
Um cretino que nunca será
ninguém
Um cretino
Um falhado
Um falhado que não gosta
de Proust
Que detesta Proust
E não quer que eu lhe
leia Proust.
E espero pai
Desejo muito meu querido
pai
Que o comboio que vem de
Santa Apolónia se estampe contra um lençol de lágrimas
E que morra como morrem
os homens.
E sim pai
Eu gostava de ser um
comboio com partida de Santa Apolónia
E pelo caminho
estampar-me contra uma nuvem de sangue
Uma pequena nuvem com
odor a naftalina,
Depois
Pego “Em busca do tempo
perdido”
E sim pai
O cretino do meu irmão
vai perceber que Proust
Sim pai
Que Proust morreu
esgotado.
Alijó, 17/12/2022
Francisco Luís Fontinha