terça-feira, 6 de dezembro de 2022

A minha rua

 

Aquela rua já não me pertence

Fechei todas as janelas da casa

Matei as plantas e a casa

E escondi todas as fotografias dentro de uma caixa,

 

Aquela rua deixou de ter estrelas

E só existe a noite,

 

Aquela rua já não me pertence,

 

E até as árvores deixaram de respirar,

E todos os pássaros

Deixaram de brincar,

 

Aquela rua,

A minha rua,

Já não me pertence…

 

Resta-me olhar a lua.

 

 

 

Alijó, 06/12/2022

Francisco Luís Fontinha

A luz da insónia

 

Desenho um pedacinho do teu coração no meu pensamento,

Abro todas as cancelas da noite,

Solto todos os animais,

E sussurro-te baixinho – vem a mim.

 

Guardo as estrelas

Na algibeira dos sonhos,

Pincelo a lua de encarnado

E acendo a luz da insónia.

 

Desenho um pedacinho do teu coração,

Guardo-o cuidadosamente dentro de mim

Enquanto as flores do teu jardim,

Dormem,

Dormem no meu peito.

 

Depois,

Deixo nos teus olhos

Todo o cansaço da noite,

Como se eu fosse uma pedra esquecida na paixão.

 

 

Alijó, 06/12/2022

Francisco Luís Fontinha

segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

Instante

 Primeiro levaram todas as crianças da montanha

Depois levaram todas as árvores e todos os pássaros

Num final de tarde

Levaram as pedras e todos os animais

Caiu a noite

E levaram a lua e todas as estrelas

 

E roubaram a noite

 

E aqui estou

Perdido nesta montanha de insónia.

 

 

 

 

 

Alijó, 05/12/2022

Francisco Luís Fontinha

Um quadro sem nome

 

Sou apenas um quadro

Só e suspenso numa parede

Fria e também ela

Só,

 

Sou apenas um quadro

Só e sem nome,

 

Não tenho nome

Porque o gajo que me pintou

Um tal de “Fontinha”

Nem um nome me deu,

 

Elas olham-me

Eu olho-as

Elas gostam de mim

Eu gosto delas

E sinto-me tão feliz…

Porque o gajo que me pintou

Nem é olhado

Nem gostam dele,

 

Sou apenas um quadro

Com cores

Rabiscos

Sombras

E palavras invisíveis,

 

Sou apenas um quadro

Só e suspenso numa parede

Fria e também ela só,

 

Tal como o gajo que me pintou,

 

Frio e só.

 

 

Alijó, 05/12/2022

Francisco Luís Fontinha

domingo, 4 de dezembro de 2022

O olhar de Deus

 Teus dedos finos e frágeis

Quando a brancura dos teus lábios

Acordam a manhã com um sorriso

 

Poisa a alegria sobre a geada

Como poisam as abelhas nas flores

Que durante a noite acordaram na minha tela

E a minha tela está viva

E brinca numa parede em triste silêncio

 

A noite transporta as estrelas

Que regressam do outro lado da rua

E a alegria que poisa sobre a geada

Desenha o olhar de Deus

Na janela da tua mão

 

Tua mão

Onde habitam os teus dedos finos e frágeis

Que acariciam a minha tela

Que brinca numa parede em triste silêncio

 

E eu termino o dia a contemplar as flores

E as abelhas

 

E as estrelas que regressaram do outro lado da rua.

 

 

 

 

 

Alijó, 04/12/2022

Francisco Luís Fontinha

Feitiço

 Um pouco mais de azul

Teus lábios em fino pergaminho

Que na minha boca é feitiço

Um pouco

De azul

Quando os teus olhos acordam da tempestade,

 

E transportas a tristeza nos ombros da madrugada,

 

Choras porque o Sol está triste,

 

Um pouco mais de azul

Teus lábios em minha mão

Quando o cansaço das flores

São o cansaço teu,

 

E de um pouco mais de azul

A flor que cresce no teu peito,

 

E ouve-se um grito,

Também ele azul,

Também ele… triste.

 

 

 

 

Alijó, 04/12/2022

Francisco Luís Fontinha

Poeta morto

 Sou o comandante

Deste navio fundeado

No poço da morte

 

E enquanto escrevo e pinto

Este velho navio

Sem rumo

Olha as estrelas que brincam no fundo do mar

 

A manhã incendeia-se nos teus olhos

E mesmo assim

A tristeza ergue-se contra a montanha

Onde habitam as palavras do poeta morto

 

Coitado do poeta morto

Nu

E deambula pelas ruas da cidade

Sem saber como receber cartas

Sem saber se amanhã escreverá um novo poema

Ou se um novo poema o escreverá a ele

E a Terra não parará de girar

Como as árvores que crescem em direcção ao Sol

 

Sou o comandante

Deste navio fundeado

No poço da morte

Quando este vosso poeta

Voa sobre os cubos de vidro

Que aprisionam a paixão das almas mortas

 

E mortas que estão

Não sonham.

 

 

 

 

Alijó, 04/12/2022

Francisco Luís Fontinha