Nesta lareira onde ardem
os meus sonhos, oiço as lágrimas do silêncio, da labareda da noite, quase todas
as noites, acordam
Ou dormem?
Acordam as cordas de
nylon que aprisionam os barcos da minha infância; alguns em esferovite, outros
em madeira fina e outros ainda construídos com os pequenos pedacinhos sobejantes
das estrelas em papel que a menina das lágrimas deixava cair quando chorava.
Não tínhamos nada, apenas
tínhamos alguns farrapos, algumas bugigangas e muito amor. Hoje percebo que ninguém
sobrevive sem comida, mesmo que tenha muito amor, mas se não houver comida e
existir muito amor, não se morre, sobrevive-se e caso seja necessário engana-se
o estômago a olhar uma pilha de livros que o meu pai teimava em não vender. Confesso
que também não vendia a pilha dos livros.
Queimá-los nesta lareira
onde ardem os meus sonhos, talvez, mas vender, não, vender não,
E talvez já tenham
acordado, que dizes?
Ainda dormem, e mesmo que
já estejam acordados, não te preocupes, não passam de barcos à espera de
entrarem na tua mão,
E claro, vender, não.
Tinha vergonha da minha
janela, acreditava que num metro quadrado de um caixote em madeira cabiam todos
os meus sonhos, fizemo-nos ao mar, e logo percebi que nem a saudade cabia,
quanto mais todos os meus sonhos. E de menino dos calções passei rapidamente a
rapazote das botas pesadas, das ceroulas, das meias grossas e das luvas que
nunca me protegeram as mãos de nada, a não ser, de quando te vi pela primeira
vez e
Ou será que dormem?
Porque não passam de
barcos à espera de entrarem na tua mão, e como barcos que são, também eles
amam, também eles choram, também eles acreditam que os sonhos são pedacinhos de
estrelas nas mãos da alvorada.
E o mar todas as noites
entrava-nos pela janela, e o miúdo dos calções, depois rapazote das botas
pesadas, das ceroulas, das meias grossas e das luvas que nunca me protegeram
as mãos de nada, a não
ser, a não ser dos pregos que um carpinteiro preguiçoso tinha semeado no metro
quadrado de madeira e num dos lados tinha inscrito
Ou dormem?
PORTUGAL.
Acredito que não dormiam,
pois, anos mais tarde, descobri que todos os barcos, mesmo durante a noite,
inventam estórias sobre a lua e toda a santa noite cantam como cantam os
pássaros,
Ela subia às árvores e
brincava com os pássaros,
E os barcos conversavam
com as estrelas em papel que a menina deixava cair quando chorava,
Não, não dormem.
Não tínhamos nada, a
roupa escasseava, o frio gélido da Trás-os-Montes entranhava-se-nos no corpo
até que acabávamos por adormecer e ao outro dia acordávamos tesos como uma
barra de ferro, e só depois de abrirmos a janela, e com o passar das horas, descongelávamos
até ao final da tarde, que depois de cair a noite, voltávamos novamente a
congelar.
Ou dormem?
PORTUGAL.
Queimá-los nesta lareira
onde ardem os meus sonhos, talvez, mas vender, não, vender não,
E talvez já tenham
acordado, que dizes?
Não. Não vendia a minha
pilha dos livros.
Alijó, 08/11/2022
Francisco Luís Fontinha