sexta-feira, 19 de agosto de 2022
Fotografia abstracta
Não
posso mais, doutor,
São
estas palavras,
São
estes rios,
São
outros mares,
São
outros corpos possuídos,
Doutor,
Enquanto
escrevo, morrem pessoas,
Enquanto
durmo, nascem crianças,
Enquanto
pinto,
Embebedam-se
criaturas, poetas e putas,
Doutor…
E
a música, doutor?
O
que tem a música!
Tem
dentro dela o silêncio,
Tem
a alvorada,
Tem
o medo e o sonho,
E
não tem nada.
Doutor.
Percebe
agora?
Porque
voar é fácil,
Porque
dormir é canseira,
Porque
sonhar é uma merda,
Uma
merda junto à lareira.
Não
posso mais, doutor,
São
as equações,
São
estas tristes fotografias,
São
as lápides,
São
as flores,
Doutor?
Ainda aí está? Junto à árvore?
É
a chuva lá fora,
São
as acácias a morrer,
São
as palavras,
São
os ossos a correr.
Porquê,
doutor?
E
enquanto chove,
As
almas gritam,
As
enxadas no Douro, revoltam-se…
E
os homens?
Ai
doutor,
Esses,
São
uns covardes,
Tudo
aceitam,
Tudo
comem,
Como
carneiros,
Como
ovelhas.
Sabe,
doutor?
Não.
Morreu
o Zé Gato,
Morreu-me
o cão,
O
canário,
Uma
tristeza, doutor,
Uma
tristeza,
Esta
aldeia,
Sem
beleza,
Sem
sol,
Sem
água benta,
Só
fachada, doutor.
Pura
fachada,
São
as montanhas a arder,
São
as palavras a morrer,
São
estes rios,
Tristes,
Frios.
Sabe,
doutor?
Não,
diz, diz…
São
os pulhas que espancam a mulher,
São
crianças a sofrer,
Algumas,
sabe doutor?
Sofrem
antes de nascer,
Sofrem
até morrer…
Depois,
depois acordam os pássaros,
Libertam-se
as nuvens das prisões invisíveis,
Estas
sim, as nuvens não são como os homens do Douro,
Revoltam-se,
Gritam,
E
o mais engraçado…
Nunca
morrem, como nunca morrem os poetas.
Os
poetas são eternos,
São
canção,
São
revolta,
Sim
doutor,
Revolta,
Porque
estes gajos metem nojo,
Os
caneiros,
As
ovelhas,
As
flores e as abelhas…
Sabe,
doutor?
Não,
diz,
Sempre
acreditei que um dia,
Que
um dia…
Sim,
Que
um dia sonhar não era uma merda,
Que
um dia,
Que
um dia, todos os dias, todos os meninos…
Brincavam
junto ao mar;
Como
brincam os peixes
E
as gaivotas,
Como
brincam os amores
E
todas as paixões,
Que
um dia,
Sabe
doutor?
Que
um dia os homens não guerreavam,
Que
um dia, as guerras,
Eram
apenas uma fotografia,
Longínqua
e abstracta.
E
depois, doutor,
Depois
a culpa é do macaco;
Coitado…
Coitado
do macaco.
Alijó,
18/08/2022
Francisco
Luís Fontinha
Sete enxadas
Eram
sete lanças de espuma
Sobre
o peito amordaçado,
Eram
sete madrugadas
De
bruma
Na
paixão amanhecer,
Eram
sete canções e coisa nenhuma,
Enquanto
o mar queria adormecer
Sobre
o teu corpo deitado.
Eram
sete enxadas
Rodopiando
os socalcos adormecidos,
Eram
sete sois e sete rios…
E
sete tardes sem dormir,
Eram
sete madrugadas,
Em
sete dias da semana,
Eram
sete lanças de espuma
Sobre
a doce tua cama,
Eram
sete lanças de espuma
Sobre
o peito amordaçado,
Eram
sete poemas em saudade,
Da
saudade do pobre coitado,
Eram
sete Invernos à lareira
Do
corpo esquartejado,
Eram
sete lanças de espuma…
Neste
corpo maltratado.
Alijó,
19/08/2022
Francisco
Luís Fontinha
terça-feira, 16 de agosto de 2022
Quando do sono emerge a triste pétala de saudade
Carlota acordou triste. Enquanto se passeava nos lençóis nocturnos da insónia, e sempre que antes de se deitar tinha a oportunidade de olhar-se no espelho da saudade, quase nunca acordava de manhã ou tal como hoje, acordava embrulhada numa finíssima lâmina de saudade.
Descera ao rio durante a
noite em pequenos voos rasantes, os barcos sombreados que o luar tinha
desenhado sobre o imenso cais onde donzelas de charme dançavam a despedida das
naus, aos poucos, começavam a zarpar em direcção à morte, tratando-se de barcos
carregados pela idade, dir-se-ia que o fogo seria a melhor forma de desaparecer
neste labirinto ténue de tristeza, caso Carlota tivesse aberto a janela para a
solidão, todos estes barcos seriam salvos pelas rezas e mesinhas que na aldeia
habitam junto às árvores.
Os cigarros chegavam e
sobravam para a última viagem da tinta sobre a tela enlameada de lágrimas e, do
outro lado do rio, junto à cabana, Carlota adivinhava um fim de tarde
mergulhada nos braços de Rita, que sempre que podia, vinha à aldeia para estar
junto daquela que conseguia rezar aos pássaros antes de estes poisarem na tela
e adormecerem como adormecem as crianças no travesseiro da inocência. Rita percebia
que aos poucos a tela lacrimar de Carlota se transformaria num negro enredo que
apenas um pincel esquecido no atelier sabia transformar em palavras.
A janela para a solidão. Todos
estes barcos seriam salvos pelas rezas e mesinhas que na aldeia habitam junto
às árvores e caso um dia Rita trouxesse na pele húmida da manhã as pequenas gotículas
do desejo, na aldeia todos seriam coniventes dos doirados beijos entre dois
silenciados corpos, enquanto no atelier, uma pequena dança avançava para os
lábios do medo, que depois da morte, argamassava os ossos na escuridão cansada
das grandes tempestades de saliva, depois, entre as coxas da madrugada, a pedra
envenenada desaparecia no rio.
Amas-me, Rita?
Ouvíamos as danças das
coxas quando nos teus lábios se percebia que o poema aos poucos mergulhava
entre os parenteses da insónia, quando sobre nós, entre lágrimas de silêncio,
as vozes nocturnas entranhavam-se em nós, como se entranham na paisagem do
loiro trigo as sílabas amorfas da loucura;
Desejo-te muito, Carlota…
Sempre que há luar na tua
mão, sempre que tenho sobre o peito a invisível madrugada dos pinceis que
apenas a tela absorve entre um círculo com olhos verdes descendo a Mutamba, o
trigo percebe que em breve será poeira como o são todos os ossos das roseiras
em flor.
Não sabíamos que o desejo
era uma nuvem de fome em direcção às esplanadas do Baleizão, que à noite,
recebia trapezistas, malabaristas e palhaços de vidro.
Porque me amas, Rita? Quando
dentro de ti apenas existe um pedacinho de lua com sabor a chocolate, quando
dentro de ti, eu, sou a princesa das noites voláteis sem perceber que já não
sou eu, sem perceber que deixei de existir na noite dos tristes triângulos das luzes
e cores, que sempre que nos beijávamos no Mussulo, se sentavam na fina areia do
pôr-do-sol.
Não vens, Rita?
E sempre que Rita não
descia à aldeia e se deitava junto à tristeza de Carlota, esta, acordava embrulhada
em tristeza e lágrimas de incenso, que à medida que a manhã avançava em
direcção ao bairro Madame Berman era absorvida pelo cheiro da terra queimada;
Assim dançávamos dentro
dos pequenos charcos que circulavam as velhas sanzalas e que de vez em quando,
junto à noite, ouviam-se os roncos dos velhos carros militares que pernoitavam
no quarte do Grafanil.
Um dia, meu amor, todas
as pétalas serão tuas e as minhas telas, apenas elas, servirão de poiso às tuas
lágrimas.
Hoje acordei triste. Enquanto
passeava nos lençóis nocturnos da insónia percebi que nas tuas mãos, doce Rita,
brincam as palavras mais belas que só o teu corpo sabe declamar enquanto junto
a mim oiço os mabecos em cio em alegres despedidas.
O Mussulo era um encanto quando
sabíamos que tudo era apenas uma imagem desenhada num espelho que alguém
apelidou de saudade, e eu, chamo de orgasmo.
Alijó, 16/08/2022
Francisco Luís Fontinha
domingo, 14 de agosto de 2022
Gladíolos
Percebia que nos teus braços
Habitavam as andorinhas
da Primavera,
Como habitam em mim,
As palavras que os teus
lábios
Vomitavam na triste
alvorada;
Percebia que nos teus
braços
Brincavam as sílabas
cansadas do luar,
Enquanto nas ribeiras,
Nas palavras do infinito,
Existiam as manhãs
cansadas,
Que nas primeiras horas
da madrugada
Desciam às vozes roucas
da solidão.
Hoje, percebo que o corpo
em dor
É um pedacinho de nada
Em direcção mar,
Em perpétuo silêncio.
Percebia que nos teus
braços
Um menino traquino
sonhava
Com as marés de um jardim
Construído sobre a sombra
das mangueiras endiabradas…
E percebia que nos teus braços
Eu bebia todos os poemas
Que nas árvores dançavam,
Como dançaram num quarto
escuro
Os gladíolos das tuas
mãos.
Francisco Luís Fontinha
Alijó, 14/08/2022