domingo, 27 de outubro de 2013

Quase anda

foto de: A&M ART and Photos

Esqueço-me que a minha velhinha máquina de escrever ainda escreve, apesar da idade, ainda lhe sinto em algumas das noites o pulsar das teclas, às vezes percebe-se que existe um sobressalto, coisa pouca, quase como quando vamos por uma calçada e encontremos uma das pedrinhas salientes, damos um pulhinho, quase que caímos ou não caímos e continuamos as conversas como se nada tivesse acontecido, acontece que muitas da vezes faltam-lhe as palavras, algumas deixaram de existir nela, outras come-as embrulhadas nas também velhas folhas de papel, e ainda tenho o problema da fita, quase inexistente, quase transparente, e vejo as letras como que invisíveis rajadas de vento quando os edifícios da outra margem vergam, ajoelham-se e rezam, e assim vão acontecendo frases, palavras misturadas em negros e vermelhos, rasuradas com o lápis-borracha, e qualquer dia, ela
FIM,
E qualquer dia, ele
FIM,
E qualquer dia, nós
Esquecemos-nos que a nossa velhinha máquina de escrever ainda escreve, pouca coisa, ou quase nada, mas escreve, banalidades, a fulana do terceiro esquerdo diz que o companheiro do quarto direito a agride, o transparente transeunte do rés-do-chão afirma a pés juntos que a menina do sexto frente está quase sempre embriagada
E eu, a velha máquina de escrever, pergunto-me
Que tenho eu a ver com isso tudo, que me interessa a mim, ao papel onde escrevo e à fita que colocas os careceres já gastos no pequeno papel, às vezes tão fino que consegue-se ler do outro lado
Do espelho?
E qualquer dia, ele
FIM,
E qualquer dia, nós
Fartos de ouvir, de ler, banalidades,
Coisas sem significado, fulana põe os cornos ao marido, e depois?
O marido corneia a fulana, e depois?
Que tenho eu, uma velha máquina de escrever com todos esses acontecimentos, e a culpa foi do parvalhão que me tirou da caixa em plástico rijo onde eu habitava, anos e anos encerrada, dormia, sonhava...
E eu, a velha máquina de escrever, pergunto-me
E depois?
“Fodia não fodia” mas percebia,
E depois?
FIM,
Da vida, da escrita, das folhas em papel, e do cheiro a tinta, fazes-me falta quando sentia os teus dedos no meu teclado, e depois de escreveres um poema ou um texto, sentia-te dentro de mim e ele acontecia, o orgasmo maquinal
FIM,
E deixaste de tocar-me e deixaste de escrever em mim e deixaste de olhar-me e pegar-me e acariciar-me e
FIM,
Beijinhos,
FIM.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha – Alijó
Domingo, 27 de Outubro de 2013

não sei o significado de janelas com vidros de prata

foto de: A&M ART and Photos

percebo pouco dessas coisas do amor
lexical... sou um desamor
desalmado
desiludido
cansado
sou um estupor
fingidor
percebo pouco dessas coisas do amor

percebo
pouco
e construo palavras com réstias de cinza dos barcos a vapor
percebo pouco dessas coisas do amor
da paixão
e do coração de uma gaivota com seios de pôr-do-sol... percebo pouco
dessas coisas sem motor
nas mãos de um louco

percebo pouco dessas coisas do desejo
do beijo
e das lágrimas em flor
percebo tão pouco dessas coisas do amor...
ai o amor...
ai e ai
e não vem e não cai
como sanzalas na lareira tuas coxas sem sabor

sem as palavras do amor
que eu não percebo nada
não entendo
não sei o significado de janelas com vidros de prata
não percebo nada dessas coisas do amor
dos telhados em lata
em chapa
o amor como tuas lágrimas que jorram na madrugada


(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha – Alijó
Domingo, 27 de Outubro de 2013

as palavras... palavras malvadas

foto de: A&M ART and Photos

converso com as pedras húmidas dos socalcos em flor
e oiço a tua voz mórbida embrulhada na neblina que se entranha no amanhecer
oiço as tuas mãos descerem às profundezas do desejo
encontro-as abraçadas aos espelhos da dor
sou um bandido recheado com pétalas de amor
e recibos envenenados dos alguidares sobre o tanque da desova...
converso e estranho a presença dos teus seios
nas montanhas de absinto
miseráveis pedaços em papel
onde escrevo
e sinto
as palavras sem sentido

(as palavras indesejadas
as palavras... palavras malvadas)

converso com as pedras húmidas dos socalcos em flor
e misturo-me com as daninhas ervas em caricias cores
escrevo-te sabendo que a saudade ainda vive dentro de nós
como um rochedo
alicerçado
mergulhado
prisioneiro das janelas com vidros de mármore
lápides onde jaz o teu nome
e vive a minha idade
as palavras
indesejadas
as palavras... palavras malvadas


(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha – Alijó
Domingo, 27 de Outubro de 2013

sábado, 26 de outubro de 2013

Nunca o saberei, e nunca te perguntarei...

foto de: A&M ART and Photos

Acordei e percebi que tinha mãos de tecido, estampado com pequenos desenhos interpenetráveis nas manhãs deslaçadas em neblinas e cinzentos cinzeiros de areia, desenhos obscuros, desenhos como noites deitadas sobre as ponte em madeira, que ligavam a cidade dos mendigos às terras perdidas dos confins da insónia,
Tinha medo de amar-te sabendo que não existias como mulher disfarçada de árvores, como as outras, embrulhadas em sombra, encobertas e enroladas nos desgostos das meninas com tranças e vestidos de chita, adormecíamos sempre que a luz diurna se extinguia nas falsas alvoradas dos papagaios em papel, seguravas tu o fino cordel, e eu
Sentado, sentavas-te no portão de entrada, amarrávamos o cordel a uma das pequenas barras em ferro e olhávamos-nos como se eu fosse o espelho, e tu
Eu a menina das tranças e vestido de chita, eu a menina que não sabias existir e que passava horas a olhar-te na paragem dos machimbombos quando apressadamente corrias a cidade como um louco em bicicleta rumo ao Oceano, depois esperava-nos um barco de esferovite com um potente motor a pilhas que tinhas retirado a um dos teus carrinhos de brincar,
Lembras-te do avião que penduravas por um finíssimo fio de pesca num dos ramos da mangueira e em círculos acertados, vomitava voltas como ventoinhas suspensas no tecto da tristeza?,
Claro que não me lembro,
Não te lembras porque as tuas mãos de tecido derramaram-se sobre a velha máquina Singer e hoje elas são parte integrante do vestido de chita da menina
Quem é essa menina de tranças e vestido de chita?
A flor, o centeio correndo leira abaixo, descendo paredes em xisto, derretendo os cubos de açúcar dos torrões de terra ressequidos, no centro da terra o espantalho, uma velha vassoura, trapos e uma cabeça de
Abóbora?
Doce de abóbora e torradas,
Lembras-te dos dias quando ainda éramos sombras de ébano e tínhamos no corpo a excentricidade das cambaleantes escadarias dos guindaste depravados, mendigos como eu havia muitos, muitos de corpo empalhado, e como eu
Com mãos de tecido,
E como tu, como tu adoravas as tardes com a tua cabeça adormecida no meu leito colo sem horário para acordares, e eu quando acordava,
Mãe, mãe tenho sede,
Tínhamos uma mesa e quatro cadeiras, tínhamos uma sala minúscula onde apenas cabíamos quando pedíamos licença ao velho para nos sentarmos, e depois da devida autorização
Sentávamos-nos, e comíamos,
E bebíamos o veneno da vergonha de existirmos.
Acordava, e percebia que tinha mãos de tecido, estampado com pequenos desenhos interpenetráveis nas manhãs deslaçadas em neblinas e cinzentos cinzeiros de areia, desenhos obscuros, desenhos como noites deitadas sobre as ponte em madeira, que ligavam a cidade dos mendigos às terras perdidas dos confins da insónia, e olhava-me e do outro lado do espelho ela vestida com um vestido de chita e tranças...
Não, não te conheço, desculpa, não te amarei sabendo que és apenas uma sombra como telhados de vidro nos cardumes das cidades invisíveis, amar-te-ei?
Nunca o saberei, e nunca te perguntarei...

(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha – Alijó
Sábado, 26 de Outubro de 2013

mulher desalmada

foto de: A&M ART and Photos

palavras sem rosto
quando sorrisos poucos
habitam no cansaço do transeunte doente
palavras sem gosto
que os barcos loucos
escrevem no caderno infame
sobre as algas de Agosto
palavras em fome
palavras sem nome
que as lágrimas do livro ausente
voam sobre a cidade dos candeeiros de papel
palavras sem nome
palavras que a morte come
e uma límpida gota de suor alimenta
como espelhos esmigalhados pelo pincel
que o pinto inventa
numa tela
numa parede
em gesso
o berço
da criança com sede
palavras sem rosto
palavras de orvalho e palavras do … e palavras nos lábios dela
dos versos verdes das plantas apaixonadas
palavras cansadas
esbeltas
tristes
magoadas
palavras sem rosto
sem gosto
sem madrugada
quando a noite é a noite drogada
palavras
palavras
palavras... de uma mulher desalmada...


(não revisto9
@Francisco Luís Fontinha – Alijó
Sábado, 26 de Outubro de 2013

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

janelas de camomila

foto de: A&M ART and Photos

sabia que uma nuvem de chocolate
poisava nos teus lábios de amanhecer
sabia e não queria acreditar
que na tua boca cresciam beijos de beijar
e morangos versos brincavam nas palavras de escrever
sabia que a noite trazia-te a vontade de adormecer
oferecia-te rosas que escondias nos livros enjoativos
aqueles que ainda consegues esconder numa prateleira envidraçada
sabia que tinhas nas mãos a Lua
e o apaixonado Luar
os barcos de ferrugem madrugar
e o mar

mas eu não sabia
que tu sabias
que existiam nuvens de chocolate
janelas de camomila
e portas de insónia
e bebia
e eu comia as sobejantes palavras tuas quando os teus olhos fugiam dos vidros de açúcar
na cama do sofrimento
acariciava-te e sentia
que tu
eu não sabia
que tu também eras de chocolate


(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha – Alijó
Sexta-feira, 25 de de Outubro de 2013

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

cristais sonolentos em manhãs endiabradas

foto de: A&M ART and Photos

entranhava-me nos teus indefinidos sorrisos
quase como um espelho com vida
que sofre
ama
e odeia a madrugada depois da despedida
entranhava-me nos meandros castanhos das tuas janelas de vidro
quando poisavas os cotovelos num peitoril embriagado
sofrido
cansado
dorido...
entranhava-me todo eu em ti
nuvem percebida das palavras encurraladas no corredor da solidão
vem a insónia e me diz
… você meu amigo
você é louco como as tempestades dos cristais sonolentos em manhãs endiabradas
em teus corpos endurecidos
embalsamados
esqueletos dentro do armário sem vida
suicidado num dia de neblina
indiferente às coisas belas que habitam o Outono
entranhava-me no sono dos teus indefinidos sorrisos
fotografava-te com um cintilante olhar
ser amante
companheiro
poeta
jardineiro...
infeliz
feliz
as palavras escritas nos teus seios mórbidos sem fumo nem cigarros
sem claridade nem fulminantes beijos em lábios de esferovite
entranhava-me
e desentranhava-me
comia
descosia
e dormia jurando que não te sentia


(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha – Alijó
Quinta-feira, 24 de Outubro de 2013