sábado, 26 de outubro de 2013

Nunca o saberei, e nunca te perguntarei...

foto de: A&M ART and Photos

Acordei e percebi que tinha mãos de tecido, estampado com pequenos desenhos interpenetráveis nas manhãs deslaçadas em neblinas e cinzentos cinzeiros de areia, desenhos obscuros, desenhos como noites deitadas sobre as ponte em madeira, que ligavam a cidade dos mendigos às terras perdidas dos confins da insónia,
Tinha medo de amar-te sabendo que não existias como mulher disfarçada de árvores, como as outras, embrulhadas em sombra, encobertas e enroladas nos desgostos das meninas com tranças e vestidos de chita, adormecíamos sempre que a luz diurna se extinguia nas falsas alvoradas dos papagaios em papel, seguravas tu o fino cordel, e eu
Sentado, sentavas-te no portão de entrada, amarrávamos o cordel a uma das pequenas barras em ferro e olhávamos-nos como se eu fosse o espelho, e tu
Eu a menina das tranças e vestido de chita, eu a menina que não sabias existir e que passava horas a olhar-te na paragem dos machimbombos quando apressadamente corrias a cidade como um louco em bicicleta rumo ao Oceano, depois esperava-nos um barco de esferovite com um potente motor a pilhas que tinhas retirado a um dos teus carrinhos de brincar,
Lembras-te do avião que penduravas por um finíssimo fio de pesca num dos ramos da mangueira e em círculos acertados, vomitava voltas como ventoinhas suspensas no tecto da tristeza?,
Claro que não me lembro,
Não te lembras porque as tuas mãos de tecido derramaram-se sobre a velha máquina Singer e hoje elas são parte integrante do vestido de chita da menina
Quem é essa menina de tranças e vestido de chita?
A flor, o centeio correndo leira abaixo, descendo paredes em xisto, derretendo os cubos de açúcar dos torrões de terra ressequidos, no centro da terra o espantalho, uma velha vassoura, trapos e uma cabeça de
Abóbora?
Doce de abóbora e torradas,
Lembras-te dos dias quando ainda éramos sombras de ébano e tínhamos no corpo a excentricidade das cambaleantes escadarias dos guindaste depravados, mendigos como eu havia muitos, muitos de corpo empalhado, e como eu
Com mãos de tecido,
E como tu, como tu adoravas as tardes com a tua cabeça adormecida no meu leito colo sem horário para acordares, e eu quando acordava,
Mãe, mãe tenho sede,
Tínhamos uma mesa e quatro cadeiras, tínhamos uma sala minúscula onde apenas cabíamos quando pedíamos licença ao velho para nos sentarmos, e depois da devida autorização
Sentávamos-nos, e comíamos,
E bebíamos o veneno da vergonha de existirmos.
Acordava, e percebia que tinha mãos de tecido, estampado com pequenos desenhos interpenetráveis nas manhãs deslaçadas em neblinas e cinzentos cinzeiros de areia, desenhos obscuros, desenhos como noites deitadas sobre as ponte em madeira, que ligavam a cidade dos mendigos às terras perdidas dos confins da insónia, e olhava-me e do outro lado do espelho ela vestida com um vestido de chita e tranças...
Não, não te conheço, desculpa, não te amarei sabendo que és apenas uma sombra como telhados de vidro nos cardumes das cidades invisíveis, amar-te-ei?
Nunca o saberei, e nunca te perguntarei...

(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha – Alijó
Sábado, 26 de Outubro de 2013

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