terça-feira, 16 de abril de 2013

A cidade das Eiras

foto: A&M ART and Photos

Ente nós, o vento que sopra e faz balançar a fina e ténue cortina invisível das manhãs indesejáveis, algures dentro da cidade, existe uma seara de desejo, com luzes, cores, flores e bichos minúsculos, vida dentro da vida, e se um dia
(e se um dia uma desconhecida me oferecer flores... isso é, nada, porque nunca uma desconhecida me ofereceu flores, nem nunca, na minha curta vida, uma desconhecida, conhecida, me ofereceu... um simples poema, ou apenas... um simples olhar tridimensional encerrado dentro de um hipercubo, pensas que sou louco, mas se pesquisares no Google por “hipercubo” encontrarás centenas deles, seres estranhos, que não devem amar, nem sofrer por amar uma maré em descomposição, como a extracção da raiz quadrada ou da raiz cúbica, ou... e se um dia uma desconhecida me oferecer flores... isso, nada, coisa alguma, nem um candeeiro de ruela consegue ser, nem cigarro, nem cachimbo, nem texto ou poema, isso é, um sonho interminável, desnecessário e não realizável, como nas manhãs de ti, o corpo da almofada embrulha-se nos teus seios, ancora-se ao teu púbis, e lá fora, um cansaço de palavras, feridas, doridas, mergulham nas clandestinas tascas com mesas cobertas com toalhas de plástico; a saudade do peixe frito, dos ovos cozidos dentro de uma vitrina de vidro, escancaradamente, sem portas ou janelas, onde poisavam as moscas, e em acrobacias, saltitavam entre os tais ovos cozidos, as pataniscas de bacalhau e os bolinhos, também eles de bacalhau, apenas de nome, porque de bacalhau, nada, só a batata e o óleo onde desciam ao fundo de uma frigideira, negra, escura como as noites sobre as toalhas de plástico, onde dormíamos, e vivíamos, e nos diziam que éramos felizes...)
Entre nós, o vento, envenenado, cinzento vento que faz adornar o teu corpo nas entranhas de um pinheiro bravio, em cio, talvez, e se um dia tivermos um filho, chamar-se-á de “Eterno Prejuízo” ou “Dirceu” ou... “Pigmeu das Arcadas com Bolor”, e se um dia, se esse dia chegar, o das flores,
(tocam-me à porta, e eu como estou ocupado, não vou abrir, escrevo num caderno, coisas sem significado, coisas que ninguém lê e que depois de passar o vento, leva-as, a todas, as palavras e o caderno e a caneta de tinta permanente, - Gosto do cheiro da tinta, digamos que, sou apaixonado pelo cheiro a tinta – e os batimentos não cessam, como um coração de oiro perdido no centro de um buraco de areia, húmida, como as tuas coxas quando nasce o dia, aos cento e vinte batimentos por minuto, levanto-me irritadíssimo, poiso a caneta sobre as palavras dispersas no papel ainda em fase de transição, do molhado até atingir o seco, maleável, pronto a alimentar uma lareira que ganha vida no próximo Inverno, puxo a cadeira desconfortável para trás, e um espaço vazio abre-se entre a cadeira e a mesa, indeciso, vou à porta, apetece-me caminhar devagar, muito devagar, saio da biblioteca, rumo ao corredor, passo por uma porta, depois outra, atravesso a sala, a cozinha e mesmo em frente à porta de entrada penso – Quem será a esta hora! - e demoro uns segundos quase minutos a abrir, tiro a mão do bolso, puxo o trinco e abre-se a tão afamada porta, um vulto com cabelos castanhos e de olhos verdes e com pele escura, nos braços um ramo de flores, hesito, não acredito, mas enfim... a vida tem destas coisas, às vezes boas, outras, pouco loucas, e outras, quase impossíveis de realizar, mas quis o destino que uma linda seara de trigo, perdida na cidade das eiras, me oferecesse flores)
“Ente nós, o vento que sopra e faz balançar a fina e ténue cortina invisível das manhãs indesejáveis, algures dentro da cidade, existe uma seara de desejo, com luzes, cores, flores e bichos minúsculos, vida dentro da vida, e se um dia”
Saltas, como um pássaro em liberdade, vergas-te quando o vento faz dançar o teu caule dentro dos desejos sonhos inventados por um caderno recheado de palavras, e
(o cheiro, meus Deus, o inevitável e inesquecível cheiro da tinta de uma caneta permanente)
E tudo apenas para que um dia, próximo, distante, ou nunca, escrever o nome do nosso filho
(“Eterno Prejuízo” ou “Dirceu” ou... “Pigmeu das Arcadas com Bolor”)
O filho de meia dúzia de palavras e de uma seara de trigo esquecida dentro da cidade das eiras, um filho como todos os outros filhos, com pernas, braços, cabeça. Olhos, cabelo, e claro, livro de instruções,
(é sexta-feira, de mil novecentos e oitenta e cinco, atravesso vagarosamente a ponte sobre o rio Sul, nas Termas de S. Pedro do Sul, a tarde parece infernal devido ao calor, distraidamente passo em frente à pensão David, vou em direcção à saída, e é quase como que se o meu corpo se transformasse em sombra, começo a contar os vidros das janelas, lá dentro nunca esqueci o cabrito assado, deliciosamente e divinal, do outro lado da estrada, o rio, e os patos de água, começo a contá-los e desisto quando vou em seis, mais à frente, atravesso uma velha ponte em madeira, e junto aos antigos balneários, debaixo de uma árvore, sento-me num dos bancos de jardim, perto de mim, uma fonte com o inconfundível cheiro a enxofre, esqueço-me que existo, e mentalmente, a cada mulher que passa por mim, imagino-a a oferecer-me flores, e nunca pensei, e nunca acreditei, que conseguisse receber tantos e lindos ramos de flores: obrigado meninas transeuntes... como os vidros das janelas da pensão)
Percebes agora?

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

A fotografia sem mãos



As mãos,
Vejo-as sobre a fina areia que o silêncio golpeia nos cascos moribundos de barcos ensonados, são vermelhas, as mãos, as mãos que o vento trouxe e semeou ao longo de um triângulo de luz, sem braços, cabeça, onde vejo apenas os tristes lábios de insónia, cruzo os braços, tal como eles o fizeram, e entrelaço as minhas mãos, para não as perder, para não me esquecer que tenho mãos, ou que um dia tive mãos, macias, de Cinderela, sumarentas comas as pétalas, como os vidros das janelas antes de ela os acariciar, as minhas mãos, escrevem, não tocam, mas inventam palavras nos muros de xisto,
Vejo-as e sinto-as,
No meu rosto coberto pelas tempestades de pólen que as abelhas transportam, de longe para longe, elas, as mãos infindáveis das tardes de Primavera parecem, aparecem, e
Desaparecem,
E deitam-se como se fossem palavras espalhadas sobre o papel branco, penumbro, e aos poucos, vou construindo o desejo, e aos poucos, eu e ela, vamos desenhando o prazer nas dunas sapientes dos distantes luares que nascem em África e vêm morrer na Europa com um Passaporte travestido de um outro transeunte, em migalhas, poucas, das velas dos veleiros doentes, elas, as mãos, poisam-se-me na face ácida, em chapa inoxidável e robusta, desaparecem
Vejo
Vejo-as,
As manhãs com ondas e espuma, oiço-as, a todas elas, espalhadas pela longínqua areia que os sonhos trazem, ou trouxeram de longe, e vão para longe, como voando à boleia do vento sem asas, livremente dentro de uma fotografia, a fotografia sem mãos, sem pernas, sem cabeça, apenas
Com rosas vermelhas, disfarçadas de mãos, as mãos do desejo em decomposição, putrefacto, o medo, o tédio, o nada, o nada quando elas, as mãos vestidas de botões de rosa, vagueiam, amam, desejam-se, como se desejam os homens, como se desejam as mulheres, as plantas e os animais, e Deus?
É esta a tua partida depois de morreres?
E da espuma há neblinas que cobrem as cidades, embrulham-se nos edifícios esfomeados e de alicerces apodrecidos, há jardins com bancos de madeira onde se sentam os amantes, trocam palavras – Amo-te muito, meu querido! - do mar um som em forma de farrapo percorre distâncias inseparáveis e atinge o jardim dos amantes – Eu também, eu também! - e ambos sabemos que numa fotografia sem mãos, pulsam os nossos corações, e a minha pele sobeja da pele dela, e na boca, em ambas as bocas do jardim dos amantes, um desequilíbrio de espuma escorre pelo canto da boca, molha os lábios e
Nasce o desejado beijo,
O beijo da fotografia sem mãos.


@Francisco Luís Fontinha
(Texto escrito para o desafio de: Maria Mendes: Alguém consegue escrever um texto para esta linda fotografia?)
(Alijó)

segunda-feira, 15 de abril de 2013

Frágeis, tão frágeis que vergam e partem, e morrem...

foto: A&M ART and Photos

Não me toques, meu amor, não toques nas minhas pétalas, não, por favor, não toques nas minhas imagens, invenções minhas quando a noite mergulha no teu corpo desassoreado, desassossegado, embriagado por palavras e palavras, por luzes, e pelas eternas árvores, não amor, por amor, não me toques,
(três pequenas malas separavam-nos da paixão das almas embalsamadas, tínhamos asas, e tínhamos onde esconder os pequenos sobejos de nós, simples coisas, poucas, das tuas mãos, apenas uma máquina fotográfica, com imagens dentro, e de mim, nada, não esperavas absolutamente nada, a não ser, meia dúzia de livros com bolor, e alguns poemas escritos sobre os teus joelhos, e confesso, sabendo que não me estás a ouvir, e a ver, que esses – Queimaste-os? - claro, assim, despedi-me do teu corpo, como alguns corpos, se despedem suspensos dos ramos de árvore, algumas frágeis, tão frágeis que vergam e partem, e morrem...)
Não, não meu amor, por favor, não toques em mim, não, não me toque – Que dia é hoje, meu querido? - não sei, não, deixei de contar os dias, deixei de apontar as horas na parede em gesso do quarto minúsculo e húmido, e com uma também minúscula janela virada para um quintal de areia, desértico, tão pobre, quase, como os móveis que habitam esta tão acorrentada casa de sonhos, grãos de milho sobre uma eira sem nome, sem destino, sem terra, e queimaste-os dizes-me tu, e claro que te mentia, minto-te, porque sou incapaz de queimar palavras, talvez tivesse coragem de queimar
(corpos?)
Mas destruir palavras, nunca, meu amor, não me toques, por favor, deixa-me, deixa-me...
(corpos, o meu, o teu, o dele, corpos, corpos entre imagens a preto-e-branco, janelas intactas, que depois das tempestades, lá, estão sossegadamente lá, como o estavam antes, como o continuaram depois, e o fotografia não é mais do que uma janela, fixa, sem vidros e inquebrável . Queimaste-os? - baixava a cabeça e não respondia, e pensava, como poderia queimar os teus joelhos... - impossível queimar os teu belos joelhos, meu amor! - e no entanto, mentia-te, dizendo-o quando não o tinha feito, e tu, acreditaste, sempre, que todos os poemas escritos sobre os teus joelhos, coitados, foram todos queimados numa sexta-feira, era Verão, talvez uma tarde de Agosto, e depois, semeei as cinzas sobre a lápide encarnada do batom que passaste a usar nos lábios, sabia-me bem, não sei a quê, talvez – A chocolate? - não, não era a chocolate, talvez fosse a saudade)
Deixa-me, que um dia vais perceber que dentro das minhas imagens existem sonhos, os nossos sonhos, um dia vais perceber que da árvore que morreu devido ao peso de um corpo, outro corpo nascerá, - acreditarás em mim? - e outro, e outro, e outro corpo mergulhará nas imagens que escondo dentro das minhas férteis coxas de silêncio, tu um dia, vais
(corpos – Queimaste-os? - sim, meu amor, sim, sim, queimei-os a todos...)
Vais, vais bater a uma porta com um pedaço de vidro, do outro lado, alguém, mulher, homem ou criança, ou todos, perguntar-te-ão pelos poemas escritos sobre os meus poemas, e tu, responderás
(queimaste-os?)
Não, por favor, não me toque, meu querido, e responderás que os tens dentro de uma caixa de cartão, melhor dizendo, três perdidas caixas de cartão, em que numa delas, três, talve... talvez meia dúzia de imagens, guardas, de mim, do meu rosto, da minha pele, e
(teus joelhos)
Não, não, por favor,
E esqueci como era o teu rosto.

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha


domingo, 14 de abril de 2013

(eras triste, tímida, e tinhas medo, e tens medo, da minha voz)

foto: A&M ART and Photos

Inventaste o meu nome numa lápide de areia, inscreveste a minha misera data de nascimento, e a possível data do meu desaparecimento, e depois, também tu, desapareceste entre a neblina cinzenta de uma triste manhã de Novembro,
(poucas palavras ouviam-se da tua boca)
Nunca as ouvi, as tuas palavras, e se existiram, nunca percebi o seu significado, tinha consciência que de vez em quando, na tua pele escura, apareciam cavernas de sílabas, tocava-lhes, acariciavas-as, e
(tantas as loucas tardes de nós dos vidros espelhados dos óculos de sol sobre a mesa-de-cabeceira)
E havia barcos encalhados em ti, e havia luzes de amêndoa nos teus doces olhos, porque dos teus lábios submergia a maré de fim de tarde, percebia-se da tua língua, que uma fina e áspera folha de desejo aguardava ordens para passar a barra e atracar no meu peito de âncora bronzeado a lixívia, e nada do que eu ouvia correspondia à verdade, e quando me perguntava – Qual verdade, esta dos percevejos e das pulgas, elas, pertencerem ao meu grupo restrito de amigos – claro que era mentira, claro que também era mentira existirem nuvens de prata nas tuas coxas, procurei-as incessantemente, e nunca sorriram para mim, e nunca apareceram na varanda do silêncio amanhecer,
(eras triste, tímida, e tinhas medo, e tens medo, da minha voz)
Não te condeno, porque a minha voz parece um trovão quando rosna e rompe na noite até chegar à janela do teu quarto, levemente levitas a tua cabecinha meiga, e vês-me em forma de som, um camafeu, um pilantra que sempre odiaste, e amaste nas horas escuras das persianas encerradas,
(amo-te)
Como amava os bonecos e os livros antigos e os chapéus e as calças frustradas..., que habitavam nos corredores da feira de velharias, no tabelier do velho Opel de 1964 tínhamos aventuras em pequenos quadrados, símbolos desconhecidos, olhávamos-nos no areal de centeio que servia para escondermos cromos, pequenas moedas sem valor monetário, e solos,
(desenhei o mapa do local exacto do esconderijo... e perdi-te para sempre)
Desorientei-me, e deixei de ver a fraga onde te tinha deixado, dentro de uma caixa de madeira, lá, mergulhadas nas profundezas da terra húmida, ficaram as tuas cartas e um retrato colorido, percebo agora que sempre fui apaixonado por retratos a preto-e-branco, e tinham um sabor a qualquer coisa, eram perfumadas
(E havia barcos encalhados em ti, e havia luzes de amêndoa nos teus doces olhos, porque dos teus lábios submergia a maré de fim de tarde, percebia-se da tua língua, que uma fina e áspera folha de desejo aguardava ordens para passar a barra e atracar no meu peito de âncora bronzeado a lixívia, e nada do que eu ouvia correspondia à verdade, e quando me perguntava – Qual verdade, esta dos percevejos e das pulgas, elas, pertencerem ao meu grupo restrito de amigos – claro que era mentira, claro que também era mentira existirem nuvens de prata nas tuas coxas, procurei-as incessantemente, e nunca sorriram para mim, e nunca apareceram na varanda do silêncio amanhecer, encostavas-te a mim, sentia-te na escuridão da vida, agora percebo porque “maldita vida”, mas na altura, ontem, diria, feliz vida, aquela, quando sentia a tua pele da espessura de uma membrana celulósica no post scriptum das tuas cartas de amor, e quando percebia que no fundo de tudo havia um “P.S.”, sentia que o mercúrio do medo estava prestes a entranhar-se em mim, como os pregos do famosíssimo faquir quando de um Circo que alicerçou asas por estas bandas, me encostou a um muro em xisto e numa voz meiga e melódica – Não respire! - e começo a sentir o pregos a espetarem-se-me no corpo, pergunto-lhe se os pregos não eram para serem espetados à volta do contorno do meu corpo – Que sim, mas só as máquinas é que não falham - e tinham um sabor a qualquer coisa, eram perfumadas)
Tão profundas, tão inertes, que hoje não reconheceria a letra que faz parte da lápide de areia.

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

Penumbra

foto: A&M ART and Photos

Penumbra refugiando-se em corpos de luz
que caminham e sonham nas andorinhas com lâmpadas de néon
debaixo de nuvens transparentes
como o sal que a água dissolve
e vomita nas palavras escritas por um louco,

Há quem desenhe nas oliveiras descarnadas do eixo da eira
os guindastes de ferro enferrujado
límpido
que engolem barcos de madeira e espigueiros empanturrados de milho
e sonhos,

E sonhos vestidos de penumbra
refugiando-se nas mãos incógnitas do perfume de cereja
há quem escreva nos sonhos sem o saber
nem o adivinhar
quando terminará o dia e recomeçará a nocturna paixão das almas,

E haverá um dia pêndulos de desejo
nas janelas do ciúme
a continuidade de mim
sobre a calçada longínqua junto ao rio
e de lá observo o mar,

E de lá... caminho e choro e sonho sonhando com a penumbra
eira com o espigueiro recheado de milho
e ao longe
os sinos da Igreja
cantando horas infindáveis horas eternamente horas...

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

sábado, 13 de abril de 2013

A Querida Rainha

foto: A&M ART and Photos

Sob o tecto da tua vaidade, porque te mata esse odor a rosas de argamassa recheada com melodias de pássaros, os melros da manhã quando se despedem e assobiam publicamente como cartazes de vozes inseguras e medrosas, abaixo, dizem eles, as árvores apodrecidas e com sabor a riqueza, obviamente estamos a falar dos morcegos que em plena noite visitam os cadáveres vivos que em casas de cartão esperam pela chegada do sangue, milimetricamente, ouvem-se-lhes o tilintar de dentes e queixadas cobertas de aço e trabalhadas como o rebelde marfim, estátuas, palhaços, veados e os malditos pássaros, são as manhãs de um desempregado
(publicamente demito-me das funções de desempregado, o drogado e o embriagado, o doente e o senhor lá ao fundo da sala – Eu? - sim, o senhor que se queixa do dente superior esquerdo, terceiro andar, número vinte e três, da rua dos arrozais, vivos, comem os pardais e a liberdade como antes de existirem a insónia e a solidão, tínhamos as drageias de pedra com pequenas rugas de sabor a limão, perfume havia em ti como os relógios do pulso do senhor – Eu? - sim, o senhor, o deleitado senhor das orelhas moucas, dos olhos ensanguentados e brilhante, como faróis nocturnos depois de partir a tempestade)
São as manhãs de um coitado,
(das orelhas em flor, com a boca entreaberta, persianas descaídas um pouca à direita, e finíssimos pontos de luz entravam e sentavam-se na cadeira junto ao esófago, e chegar ao estômago era um instante quase mínimo, e quando lhe perguntávamos – O senhor fuma? - respondia-nos que não, - Não senhor, senhor doutor! - e continuava que já tinha fumado toda a “merda” que havia para fumar... mas devidos às circunstâncias – Quais circunstâncias, senhor António? - não responde, o arguido recusa-se a responder, e assim ia andando o dia até chegar o cortinado da noite, e a linda e bela Joana – E peço desculpa... mas tinha de encontrar um nome! - e a linda e bela Joana carregava no interruptor dos sonhos, e uma máquina poisada sobre a cristaleira começa a vomitar sons melódicos, e conseguia misturar sons musicais com palavras travestidos de poema...)
A Querida Rainha,
Oiço-os dentro da máquina com feições de caixa e qualquer coisa com perfume a Planeta 3, e encostas a cabeça ao cadeirão e quando me apercebo, não estás entre mim, algures voaste, como as poucas palavras que trocaste comigo, Rainha, minha Eterna Rainha,
(meu amado senhor)
Que dizeis vós do meu destino?
(amar, desamado, não amando, abandonado, sonhando, não sonhado, amar, amar os veleiros com rosa purpura no peito das esquinas da cidade do sofrimento, lento, minto, quando de dentro, do corpo, o alimento, e o fermento das raízes que seguram os edifícios à terra laminada, fatiada, como o queijo e a marmelada, sem o sossego do vento, invento coisas, coisas e coisas que tu, que eu, nunca soubemos quem eram. és, tu, sou eu, e não encontro as palavras certas para te definir, nunca percebi se era uma equação matemática, nunca percebi se eras um poema ou um texto, ou ambos, ambas, disfarçados e disfarçadas, de Primavera, sonâmbulas manhãs sem madrugada, amar, desamado, empregado,desempregado, filho, filha, enteado, e no entanto, estou aqui, agora, sentado...)
“Sob o tecto da tua vaidade, porque te mata esse odor a rosas de argamassa recheada com melodias de pássaros, os melros da manhã quando se despedem e assobiam publicamente como cartazes de vozes inseguras e medrosas, abaixo, dizem eles, as árvores apodrecidas e com sabor a riqueza, obviamente estamos a falar dos morcegos que em plena noite visitam os cadáveres vivos que em casas de cartão esperam pela chegada do sangue, milimetricamente” - Olá, eu sou a Joana! - e mesmo não sabendo, desconhecendo, dizendo, digo-o, o prazer é todo meu, Menina Joana, que como já tive a oportunidade de salientar..., precisava de um nome, uma morada, uma rua e de um número, se possível, par, e tive o azar de escolher um número ímpar, envelhecido, e um nome que de lindo ser, ninguém conheço com esse apelido, digamos, tenho intimidade suficiente para dizer e escrever que
(sinto muito, Minha adorada Rainha – Não, não conheço ninguém que se apelide de Joana – e quando me perco nas ruas, pergunto-me na passagem pelas coisas e objectos estranhos – Proibida a entrada a pessoas estranhas ao serviço... - e não entrei, e recusei-me a admitir que existia uma íntima probabilidade de a primeira mulher com quem me cruzava na rua se chamar Joana)
Que aqui o Zé ninguém, não conhece, nunca conheceu, nenhuma Joana – E é tudo? - SIM, MINHA ADORADA RAINHA, É TUDO.

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha