(Domingo)
Temos de terminar isto, fiz-te sofrer durante
duzentas, trezentas... não mais de quatrocentas páginas, mas hoje,
juro, hoje vou matar-te, deixar-te em pedaços, destruir este e os
outros pedaços de papel para que nada, absolutamente nada sobre de
ti,
Chamei-te Zizi,
Como podia apelidar-te de Maria, Teresa ou Marilú,
e quando penso em ti
Marilú,
Recordas-me o incenso em brasa e o cheiro a mar
quando ele vive a mais de duzentos quilómetros de mim, recordas-me
as caves misturadas na noite, recordas-me a literatura travestida de
orvalho abraçado a um cais de embarque, cortaram-te as correntes que
te prendiam à terra achatada e agora navegas desesperadamente como o
vento sem rumo, como as pessoas de mim
Sobre as árvores à espera que regresse a
segunda-feira, hoje serás o último dos textos, quer queiras quer
não, porque me cansei de ti, das tuas mãos e das tuas tristes
palavras, também me cansei dos teus lábios, da tua boca
Zizi: - Odeio-te quando não fazes amor comigo,
odeio-te quando te finges de espelho e estaticamente pareces um fio
suspenso por um fio de nylon,
E tu sabias que era essa a minha vida, ou não?
Mas hoje morrerás, hoje deixarás de ser texto,
palavras, imagens a preto e branco, hoje, Domingo,
Fato, cansado
De ti
Do cheiro do papel e dos livros,
Das tintas,
E das histórias,
Pareço, pareço um vagabundo numa paragem de
eléctrico, vestido de negro, confundo-me com a chegada da noite, mas
fico com a sensação que vão cair gotinhas de água com perfume de
incertezas, dores musculares, e uma estrutura óssea quase em ruínas,
doem-me os pilares, doem-me as vigas, doem-me os alicerces inventados
por um engenheiro desgovernado, escrevia palavras nas coxas de Zizi,
e levava-a a passear, quando
O Tejo já dormia e quase nem se via com as luzes
reflectidas nos olhos da madrugada, chegavas tardíssimo a casa,
chamavas por mim, eu dormia, outras
Fingia dormir,
Tínhamos sobre as almofadas de linho os quatro
cubos de areia com cinco esferas de aço, tínhamos três janelas sem
vidros, sem esquadria, apenas o buraco com imagens de
Matar-te-ei com com uma caneta de tinta permanente,
e imagino-te a derramares-te pelas folhas do caderno como um pente
nas faces do xisto antes de acariciado pelas mãos de um feliz
travesti
Marilú,
Com imagens de manhãs brancas e noites cinzentas,
como fotografias penduradas num cordel, e de mangueira a mangueira,
olhavas-me
Olhava-te na vida de silêncio que inventaste para
mim, e sobre mim, e depois de mim, e
Matar-te-ei hoje,
E deixarei de escrever-te, morrerás ao som de “The
Enlightement” The Ratazanas, e depois fazer-te-ei descer as
íngremes escadas da melancolia, até que desaparecerás nas ondas
híbridas do oceano em cio, e eu queria tanto abraçar-te, e eu
queria tanto beijar-te
Antes de poisar a caneta e escrever sobre a noite
FIM,
E não sabias que um barco vinha buscar-me aos cais
dos acorrentados, e nunca soubeste que uma gaivota vinha a mim, como
vieram todos os soluços das manhãs quando acordava e do outro lado
do espelho
Apenas
Do outro lado do espelho um vazio chamado círculo,
com olhos verdes, com pernas e braços e coxas e púbis, um círculo
trigonométrico encaixado no crucifixo que a parede segurava com as
mãos da insónia, e dizias-me
Odeio-te quando não fazes amor contigo...
Zizi?
Sim, amor
Não percebes que é propositadamente
O quê amor?
Que eu
Tu o quê amor?
Quero que me odeies...
Como se odeiam os poemas ainda não escritos dentro
da minha cabeça de abobora, lembras-te do homem com cabeça de
abobora? Talvez um dia, quando leres estas palavras, percebas
Quero que me odeies...
Que das minhas pobres palavras nunca vão nascer
coisas para encantar os espelhos, as ruas, as ruelas e tristes casas
de pasto, sobre uma pobre mesa de madeira vestida com uma pobre
toalha de plástico, um copo e uma garrafa de vodka, tu preferias
vinho, tinto, a empregada, já de idade avançada tinha acabado de
deixar uma travessa com peixe frito, pão, azeitonas, dispensamos
tudo, excepto as bebidas, não tínhamos fome, mas comíamos palavras
E sussurravas-me baixinho
Amor,
Sim Zizi,
Odeio-te quando não fazes amor comigo,
(e não percebias que era propositadamente).
(ficção não revisto)
Francisco Luís Fontinha