Procuro as mimosas encantadas dos teus olhos de
ontem, havia luz ensonada que voava sobre os teus dezoito anos de
ontem, passeavas vestida de vermelho, e tínhamos acabado de
construir um rio, duas pontes e uma casa de poiso, tínhamos uma
montanha só nossa, havia árvores no quintal da casa que
construímos, e havia pássaros que dormiam nas árvores que viviam
no quintal da casa de poiso, que construímos
No nosso quintal,
Uma pista de gelo flutuava na cave do edifício em
ruínas, três vezes ao dia, ao pequeno-almoço, almoço e jantar, as
drageias da loucura, ele sentava-se numa cadeira de lona, cruzava as
pernas, puxava de um cigarro, e não o acendia, observava-o na
escuridão das noites, e cruzava os braços, e
Num toque subtil e silencioso,
Ligava o interruptor dos sonhos, no ecrã havia
quatro sonhos disponíveis; “das noites sem dormir”, “as
madames envernizadas com pincéis de areia”, “de nome sonho” e
“as janelas com vidros de cartão”, hesitou
Escolhi “as madames envernizadas com pincéis de
areia”, e imaginava homens vestidos de preto, perdidos na noite
preta, escuridão entre as palmas afamadas dos barcos pretos,
sentados nas esplanadas
Pretas, negras, e mordedelas de caninos chateados
com o tédio das pequenas surpresas que o dia inventava, marés de
vidro, telhados de xisto, ardósias engasgadas no cu da serra, a
montanha em vómitos desassossegados, diarreia e dores de barriga,
até mergulharem-se-lhes nos ombros platinados o rio Doirado com
sabor a saudade,
Hesitou
No nosso quintal? Tens a certeza? Claro que sim,
pensas que sou louca, pensas que vivo dentro de um cubo com faces
Negras?
Não parvalhão,
Com faces cinzentas e invertidas, e confesso-te que
quando me perguntam onde está a cabeça, simplesmente que
Não sei, e questiono-me
Qual cabeça? Loucos pensava eu, pode lá ser as
faces de um cubo terem cabeça, braços, pernas, lábios, pénis,
vagina, e boca?
Negras
Não parvalhona,
Hesitei,
Que, e deixei de acreditar nos cubos com faces onde
vivem as mimosas encantadas dos teus olhos de ontem, havia luz
ensonada que voava sobre os teus dezoito anos de ontem, passeavas
vestida de vermelho, e tínhamos acabado de construir um rio, duas
pontes e uma casa de poiso, tínhamos uma montanha só nossa, havia
árvores no quintal da casa que construímos, e havia pássaros que
dormiam nas árvores que viviam no quintal da casa de poiso, que
construímos
No nosso quintal, um cubo, feio, hirto, e sabíamos
que o preto vestia-se de noite e corria nas escadas sem corrimão, o
preto, negro, a cor mais bela do teu vocabulário, sabes?
Dizia-me ela,
A noite, a escuridão, o céu desprovido de estrelas
e luar, as palavras escritas com esferográfica
Com tinta permanente preta,
E oiço-lhes dos olhos também eles negros, vogais à
procura de sorrisos, e oiço-lhes dos olhos também eles negros,
sílabas com línguas de gato, e sentava-me no lancil do passeio a
olhar os barcos que acabavam de morrer quando encostavam à cidade
fantasma,
Com tinta?
Preta,
Qual cabeça? Loucos pensava eu, pode lá ser as
faces de um cubo terem cabeça, braços, pernas, lábios, pénis,
vagina, e boca? Ouvíamos
O quê?
Portas, janelas, janelas com vidros de cartão, mas
o que eu adorava eram as... “as madames envernizadas com pincéis
de areia”, os guindastes no Porto carregando, descarregando, e às
vezes em pausa, fumavam cigarros de enrolar, depois, carregar,
descarregar, até que a noite, negra, preta, escura
Se construía como eu e tu construímos
A casa de poiso, o rio, as pontes, as árvores que
viviam no quintal da casa de poiso, os pássaros
Que têm os pássaros?
Os pássaros que viviam nas árvores que dormiam no
quintal da casa de poiso, e tínhamos duas montanhas, uma minha,
outra, tua, e entre nós, nada, apenas um pano de chita pintado de
noite, e assim nos separávamos quando a paixão invadia os dias
tristes de Agosto...
(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha