sábado, 14 de março de 2015

Livros em viagem


O suicídio embrulhou-o na almofada do sono
como quem semeia numa fogueira
palavras
e desenhos
e corpos
e beijos
o desejo
meu amor
a saudade dos tentáculos teus braços
quando olhávamos petroleiros brincando no Tejo
o vento
levava o teu cabelo até à outra margem...
alguns minutos
poisava na minha mão
estrelas
os teus olhos
Belém fervilhava
como um campo de centeio
nos corredores da cidade
os livros em viagem
atravessavam a ponte
sem autorização
sós
o café
e a água
a esplanada em cio
quando ouvia o uivar de uma gaivota
em todos os finais de tarde
sós
o café
e a água
estrelas
nos teus olhos de rosa embalsamada
o jardim nos esperava
e abraçava
com corrente de aço pinceladas de silêncio...



Francisco Luís Fontinha – Alijó
Sábado, 14 de Março de 2015

sexta-feira, 13 de março de 2015

Nascia, afogava-se nos soluços da madrugada, lá fora, as palmeira da Baía, os barcos abraçados às cancelas da solidão,
Pai?
Filho?
Solidão, nascia, em cada minuto de esperança as cinco cintilações da estátua de sombra, o sal, o pôr-do-sol perdido na claridade inventada por Miguel
Narcisos enganchados no desassossego, literalmente
Filho?
E Miguel imaginava barcos na parede do quarto, alguns risco, palavras desconexas, mortas, assassinadas pela loucura,
Filho?
Solidão, pai...
O que é?
Pois, filho, olha um vez li um texto onde uma mulher era amada por três poetas e um pintor, o pintor esquecia-se da flor, e a tela sempre vazia, branca, dia
Solidão, pai...
Dia da Poesia Nacional, 14 de Janeiro, homenagem a AL Berto e aos seus sonhos,
(Telegrama)
Odeia-me, eu sei pai,
Mas... a solidão, a morte, o camuflado desejo de Morrer
Miguel?
Sim, pai... quero,
O dia mais “fodido” da minha vida,
à tua morte... e das abelhas decalcadas no xisto, a pele da beleza...



(ficção)
Francisco Luís Fontinha – Alijó
Sexta-feira, 13 de Março de 2015

Bilhete na alvorada


No trajecto da insónia
um ponto embrulhado nas coordenadas do silêncio
percebe-se pelo movimento lento
que a parábola incendeia o pequeno quadrado
lá dentro o medo
viver ele
enquanto desenho na ardósia tarde
o significado das imagens nocturnas do prazer
o corpo é um pesadelo sem porto onde aportar
viver ele
no mar
e cansa-se do rasurado veneno que o vento semeou

a carta regressa
endereço insuficiente
ausente
talvez morto
talvez contente...
no mar
o luar pincelado de andorinhas marés
e ele
sempre ele
viver ele
e cansa-se
não o devia fazer

fugir
sem...
sem deixar um bilhete sobre a secretária
ou
ou apenas um traço no espelho embaciado da casa de banho
eu percebia
ausentou-se
foi-se
nunca mais voltará aos livros...
nunca mais acordarão as vozes das sílabas embriagadas
nos sonhos
da alvorada.



Francisco Luís Fontinha – Alijó
Sexta-feira, 13 de Março de 2015

quinta-feira, 12 de março de 2015

Não sei, António, não sei
Regressar, porquê?
Hoje acordei cedo, Margarida embrulhada nos lençóis do Pôr-do-Sol, e lá longe
Cintilações dos minguados beijos nos teus lábios, os seios de cera desenhados nas eternas mesas-de-cabeceira
Louco, ele?
E lá longe, murmúrios e incorrigíveis uísques brincando dentro de um livro, Margarida
Amor?
Amar...
Os homens tinham regressado da faina, olhava-me um barco, tive medo, confesso,
Eu confesso
Tu confessas
Ele confessa,
E confesso que fiquei perplexo, tão triste, tão triste como as flores de Inverno,
A faina, peixe... nenhum, nada, nada ao quadrado vezes seis a raiz quadrada de mil noventos e sessenta e seis, o pequeno-almoço, as torradas,
Para niguém, devolvida
Endereço desconhecido,
Ele confessa,
Um galão, escuro,
António?
Sim, amor,
Hoje,
Hoje o quê, meu amor?
Hoje não vou escrever palavras de chocolate...



(ficção)
Francisco Luís Fontinha – Alijó
Quinta-feira, 12 de Março de 2015

os livros


ausento-me deliberadamente das sombras envergonhadas
que habitam os socalcos da saudade
sou um ninho de cacos
e pequenas películas de silêncio
pela madrugada
oiço a tua voz aprisionada nas frestas deste cubículo
há entre nós um espelho cansado
e triste
ausento-me dos teus lábios
e perco-me nas palavras sem nome
como as ruas da tua cidade
ou da tua aldeia

o musseque
fervilha
transpira poesia
e o teu cabelo suspenso numa fotografia
tão distante
o mar
e as marés de sono
que me embrulhavam
hoje
não mar
não sono
nada

amar
amar
amar as flores e os desenhos embalsamados
correr montanha abaixo
deitar-me sobre ti
apenas
o peso das nuvens pinceladas de alfazema
a aceleração
acorrentada a uma equação
a física
a matemática
e... e amar

nada
os separa
os fios de sémen perdidos no cacimbo
o cachimbo em brasa
lúcido
de braços abertos
e abraça-me
e beija-me
como se beijam todos os livros
folheados
e no entanto
ausento-me deliberadamente das sombras envergonhadas...



Francisco Luís Fontinha – Alijó
Quinta-feira, 12 de Março de 2015