a velha máquina de
escrever sussurrava sílabas contra os vidros indefesos da janela com
vista para o jardim, nua, a candeia zarolha e com um dos bracinhos
engessados devido à estrondosa queda sobre o soalho sem tempo para
escrever os ais e os uis no tecto da cozinha, nua, a candeia zarolha
que comia as sílabas vomitadas pela velha máquina de escrever,
comunista, ela, a máquina, fabricada na ex-URSS com a impressão a
quente das inicias CCCP, das poucas caricias ouviam-se na lareira os
estilhaços doentios do meu pai
- tem cuidado que as
gajas
embriagado, sempre dentro
do taparuer metálico onde escondia os cigarros e o álcool e em
pequenas porções de saliva misturava na mão trémula pedacinhos de
areia branca, snifava o açúcar desperdiçado nas chávenas do café
e do chá e dizia que o excesso de açúcar
- tem cuidado com as
gajas porque o excesso de açúcar provoca a diabetes e tem de ser
snifado, se o engoles juntamente com o café ou com o leite, tem
cuidado, com as gajas em voos sobre as oliveiras entre sombras e
prostitutas do passeio com ardósias encarnadas e bâton labial,
estavas linda,
hoje ouvi dizer que ia
ser proibido ser louco, e que os loucos semeados nas jangadas de
deus, iam deixar de serem loucos, por Decreto-Lei termine-se a
loucura e a pobreza, felizmente pertenço aos dois e passarei a ser
livre, Ouvia-o murmurar no quarto agarrado à porta do guarda-fato,
- está bem pai?
respondia-me que sim Na
boa, mais feliz não posso, mas olha, tem cuidado com as gajas
nascidas em Janeiro, as pessoas olham-te como se fosses um monstro
porque és meu filho, pertences-me, tal como eu pertenço-lhes, nasci
louco, irei morrer louco, e é tão lindo o mar quando desce do
tecto, quando juntamente com a candeia zarolha me vêm visitar,
dou-lhes um simplificado beijo cambaleado em palavras de merda, hoje
não me apetece ver-te, hoje não me apetece falar-te, e no entanto,
e no entanto gosto muito de ti,
e claro nada bem, não
estava e nunca esteve bem, via-se quando se pegava na fotografia
tirada momentos antes de começar a envelhecer, o cabelo fervilhava
no cacimbo em camisola de alças e das barbas pergaminhos suores da
chuva miudinha quando se ausentavam as gaivotas dos mastros
moribundos, aos poucos começou a tropeçar na sombra das mangueiras,
raramente sonhava, gritava pelo meu nome sem perceber que eu já não
vivia ali, eu uma múmia enrolada nas páginas de uma lista
telefónica, aproveitava para telefonar à Arminda, folheava a lista,
nada, perdia-me completamente nas sombras das malditas mangueiras,
tal como ele, desisti
- tem cuidado com as
gajas porque o excesso de açúcar provoca a diabetes,
desisti de deambular pela
cidade embrulhado em paginas de uma lista telefónica, folheava,
folheava, e quando chegava ao ARM saltava para o BR, faltavam-me
páginas, sempre, nunca percebi a ausências de algumas páginas que
durante a minha vida desapareceram, umas em Angola, outras, outras em
Lisboa, e outras..., entre parêntesis do vento loiro que às vezes
beijava loucamente a candeia zarolha,
- nascidas em Janeiro, os
destroços do mármores que alguns constroem sobre a sepultura da
alegria, cuidado com elas, as gajas nascidas em Janeiro e com flores
esdrúxulas na lapela, cuidado com as gajas com o coração de xisto
e pedaços de socalco nos seios, Está bem pai?, e não estava, e
nunca esteve desde que ouvia-o murmurar no quarto agarrado à porta
do guarda-fato, olhava-se no espelho e do outro lado um palhaço com
uma cabeça de xisto, e cuidado com as gajas, com elas, e pedaços
de socalco nos seios, amanhece, é dia, a candeia transparente habita
sobriamente no soalho da casa louca habitada por loucos, e por
Decreto-Lei acabe-se com a loucura e com a pobreza, e serei livre
como os pássaros que brincam nos plátanos das traseiras, as janelas
sem grades, o almoço despido de drágeas, menino Francisco a
mãozinha, coitado de mim, ausente, perdido entre páginas de uma
lista telefónica, abro a mãozinha e o velho com a barba mergulhada
no suor do capim grita-me FRANCISCO POR DESCRETO-LEI FOI BANIDA A
LOUCURA E A PROBREZA, não acredito, é impossível, é verdade
rapaz, e claro que não era verdade porque à minha volta existiam
grades de finíssimos fios de luz, cambaleados os medos desenhados
pela tua mão enquanto beijavas a candeia zarolha,
tão longe a tua mão de
velho marinheiro sentado no cais imaginário dos barcos de
esferovite, éramos novos, crianças, e era a primeira vez que víamos
um barco com motor, e às voltas no tanque onde as mulheres passavam
as tardes a pentear a roupa suja da semana, metias a mão na
algibeira, tiravas duas pilhas, colocavas-as na parte traseira e ele
desaparecia na neblina do sabão esbranquiçado que a pobreza
construía nas tardes de Inverno, e ele
- tem cuidado que as
gajas,
em círculos de revolta
em revolta até pegares nele, retirares-lhe as duas pilhas e ele
adormecia enquanto tu ias docemente encontrares-te com a candeia
zarolha com os bracinhos engessados, nos lábios o bâton silábico
das manhãs de ausência, cambaleados todos os desejos da infância,
ao teu lado, o meu pai
- tem cuidado com as
gajas nascidas em Janeiro,
porquê pai pergaminho
rasurado embebido em fotografias completamente abandonadas no
alpendre de madeira mutilada pelas balas transparentes da húmida
vila transmontana, e sabia que a minha mãe
- a brincar às
escondidas com uma criança que eu nunca conheci,
endoideceram as acácias
e as amoreiras e todas as mangueiras que os meus olhos viram durante
as tardes, porquê pai?
- FRANCISCO POR
DESCRETO-LEI FOI BANIDA A LOUCURA E A PROBREZA,
e nunca mais voltamos a
brincar com os barcos de esferovite.
(texto de ficção não
revisto)