segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

para a menina dos sorrisos com lábios poéticos

“para a menina dos sorrisos com lábios poéticos que o silêncio das palavras alimenta a noite melancólica da paixão”, e queixava-se por tudo e por nada, faltava-lhe sempre alguma coisa

- ainda hoje coisas que faltam dentro de coisas que sobejam,

se tinha a prata de alumínio, faltava-lhe a heroína, tinha o dinheiro e faltava-lhe a prata de alumínio e a heroína, pior, tinha tudo e o corpo rejeitava em vómitos circulares que desenhava entre os plátanos e as sandálias que trouxera de Luanda, no recreio da escola escondia-se aos olhos do pinheiro manso inventando pinhões e vidros partidos, os calções sentiam a geada doce da Primavera, tremia de frio, enroscava-se nos abraços desertos que ouvia das palavras moribundas, das palavras sujas, das palavras imundas,

- e a palavra amo-te acabadinha de suicidar-se na rua Augusta, Tens a certeza miúdo?

sim pai, eu vi-a suspensa da janela do terceiro andar, estava roxa, estava incrédula, e o vento roçava-se nela e nele, quando o paragrafo inteiro, também ele suspenso na janela, putrefacto no esqueleto da literatura solitária que as noites de inverno constroem nas lareiras do sono, perguntava-me a que cheirava o cadáver de um simples paragrafo que quase nunca tive porque me faltaram sempre coisas, tinha a cratera do vulcão e faltava-lhe o divino magma, tinha tudo e

- os calções sentiam a geada doce da Primavera, o corpo rejeitava em vómitos circulares que desenhava entre os plátanos

palavras que nunca tiveste coragem de escrever no meu secreto diário, palavras de merda, palavras como a palavra amo-te depois de suicidada, coitada dela, da palavra amada, inventada por vezes no silábicos alumínios que o mar deixa cair sobre a espuma doirada do mês de Janeiro, ninguém, Tens a certeza miúdo? invejada por vezes no silábicos alumínios que o mar deixa cair sobre a espuma doirada do mês de Janeiro, e eu não sabia que dos beijos nascem poemas,

- ainda hoje coisas que faltam dentro de coisas que sobejam,

cruzava os braços, flectia os joelhos até me sumir nos xistos emagrecidos que as tardes de Abril gostavam de escrever nos vidros das janelas dos barcos,

- “para a menina dos sorrisos com lábios poéticos que o silêncio das palavras alimenta a noite melancólica da paixão”, e

o que são poemas, pai? Tens a certeza que viste a palavra amo-te suspensa na janela do prédio da rua Augusta? Sim, Pai, Tenho a certeza, roxa, silenciosa, imunda, suja, ah ah ah... poemas são palavras que se suicidam nos prédios com escadas até aos sótãos virados para o Tejo, sentavas-te e olhavas as longínquas manhãs inocentes depois das viagem até ao abismo, e tinhas inventado o ciúme,

- e os vómitos dilaceravam-me dentro das placas de gesso da pensão ALZIRA, mulher de boas famílias, culta, poetisa, e às vezes escrevias nas costas azuladas das portas da casa de banho as histórias sagradas, belas, poeticamente difíceis de esquecer, e eu, eu descia as escadas e quando pisava pela milésima vez os pesadíssimos paralelepípedo da insónia,

já não conseguia lembrar-me das palavras da tia Alzira,

-e tinha pena dela,

quando as pálpebras do poema sobre a madeira imunda, espessa, onde em pedaços de papel subtraído a uma velhíssima lista telefónica, ela, coitada dela, assentava os números invisíveis dos bilhetes de identidade, também eles, tal como a palavra amo-te, acabadinhos de suicidarem-se nos jardins de Belém,

- e tinhas inventado o ciúme,

e tinhas inventado a palavra amo-te, e tinhas inventado a rua Augusta, e ainda hoje, ainda hoje coisas que faltam dentro de coisas que sobejam; os teus lábios poéticos que o silêncio das palavras alimenta a noite melancólica da paixão.

(texto de ficção não revisto)

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