Oito paredes
Uma janela
Nove estantes
Prateleiras
E aproximadamente
Quinhentas mil
palavras,
(dois compartimentos)
Juntamente com as palavras
Fotografias
Esquemas
Gráficos
E dedicatórias,
Dedicado a
Feliz Natal de 198…
“Feliz aniversário
querido filho Francisco” ou outra merda qualquer
Mais “odeio-te”
Do “amo-te”
Alguns “nunca mais te
quero ver”
Felicidades
Boa viagem até ao Sol
E claro
Pequenos poemas que vou
escrevendo nos livros que leio
Datas
Números
Alguns rabiscos,
Quarenta cachimbos
Relógios
Canetas de tinta permanente
Discos de vinil
CDs
Catálogos e tabelas e
outras coisas e tal
Retractos
Abstractos quadros
E muito lixo,
Manuscritos dos anos
oitenta.
(mais de mil textos e
poemas)
Quando me sento na
secretária
Puxo um cigarro
Engano-o
Acendo-o
E fumo-o
Olho para a janela
O que vejo
Esqueletos
Esqueletos
Muitos esqueletos
Dos que amei
Dos amigos
Digamos que a janela da
minha biblioteca
A minha biblioteca
É um cemitério de ossos
Éum pequeno estendal de
retractos
A preto e branco
A cores
E ainda outros
Nem são a preto e branco
Mas também não são a
cores
Direi que são retractos
de ninguém
Anónimos
Anónimas
Pequenos corpos de luz,
O que tenho mais eu
Eu
Que vos possa oferecer,
Digamos que nada mais.
A minha fortuna maior
São caracteres
Milhares de caracteres
Esquemas
Gráficos
Retractos
Cachimbos
Os relógios
Os abstractos quadros
Desenhos
Discos de vinil
CDs,
(e muitos livros com
muitas equações)
E claro
O cemitério de ossos que
tenho na janela.
E enquanto fumo o cigarro
Questiono-me
(para que serve toda esta
merda?)
E se todas as noites me
sentasse à lareira
E aos poucos
Fosse semeando na lareira
todos estes caracteres
Todos estes cachimbos
As canetas de tinta permanente
E todo o resto
Talvez
Talvez ao fim de quinze
dias esteja em paz
E liberto de todos estes
pertences
Tralha
Merda
Muita merda,
O meu problema maior será
como me desfazer do cemitério de ossos;
Parto os vidros da
janela?
E será que após partir os
vidros da janela
O cemitério de ossos
desaparece,
Vai embora?
E se não for embora?
Fico sem janela
E com o cemitério de
ossos?
O cigarro acaba de
desmaiar
Provavelmente
Tensão alta
Ou açúcar no sangue
Fricciono-lhe o rosto
Começa a abrir os
olhinhos…
E temos novamente cigarro
para mais alguns minutos,
Poiso os olhos na
prateleira onde dormem
AL Berto
Pacheco
O Lobo Antunes
Cesariny
O Cruzeiro Seixas
E penso
E debato-me
O que fazei quando tudo arde
(António Lobo Antunes)
O que fazer com todas
nestas cinzas?
Com toda esta merda?
Sim
Merda
Sim
Cinzas
Porque toda a minha vida
Foram cinzas
Noites em claro,
Saía ao principio da
noite
E regressava de madrugada
com um saco repleto de palavras
Depois
Durante o dia
Colocava-as sobre uma
folha branca
Agitava um pouco
E passadas algumas horas
Tinha poemas
Tinha textos
Tinha desenhos
E às vezes descuidava-me
E tinha uma grande
porcaria
Ficava tudo chamuscado.
(nunca fui bom
cozinheiro)
Tinha o silêncio
Tinha o mar
Tinha barcos
Tinha nada
Tinha rios
Socalcos
Enxadas
Tinha tudo
Tudo
Tudo muito arrumadinho,
Agora não sei o que fazer
a toda esta porcaria
Não sei se queime tudo
Não sei se dê
Não sei…
(a minha preocupação é
com a janela)
Que farei com todos estes
ossos?
Dinheiro não será
certamente
Porque ninguém compra
ossos…
E se comprassem ossos
Já tinha vendido os meus
Não preciso deles.
E voltando
Às oito paredes
Uma janela
Nove estantes
Prateleiras
E aproximadamente
Quinhentas mil
palavras,
(dois compartimentos)
E questiono-me se não
seria mais feliz
Se eu não tivesse nada
disso
Se eu nunca tivesse
olhado o mar
Olhado o céu
A lua
O luar
O capim
As chuvas
A geada
Ter nascido às sete e
trinta da manhã
Saber o que é um machimbombo
Ter nascido a um Domingo
Tudo isso
Em Janeiro
E o outro
Aquilo
Daquilo
E um dia
Qualquer dia,
Nada.
Apenas mais um dia.
Mais nada.
De nada.
Alijó, 15/12/2022
Francisco Luís Fontinha