domingo, 27 de julho de 2014

Os socalcos das coxas cinzentas dos pinheiros bravios...


Feliz aquele que tem alguém para amar,
feliz aquele que tem um livro para ler,
escrever, tão feliz... tão feliz aquele que sente a noite adormecer,
adormecer... nos braços do luar,

Feliz aquele que tem lábios para beijar,
que habita numa boca com sorriso de amor,
feliz aquele que inventa cabelos na planície do amanhecer,
e sem querer... e sem querer começa a chorar,

Felizes os barcos que têm marinheiros de papel,
corpos nus, corpos com sabor a mel...
feliz aquele que tem seios para pintar,
segredos para desvendar, quando o calendário da solidão... desaparece no mar,
feliz, eu?
talvez venha um dia a acreditar,
que há sanzalas com odor a chocolate,
que existem nuvens plantadas nos socalcos das coxas cinzentas dos pinheiros bravios...
feliz aquele que morre sem o perceber,
feliz..., tão felizes os cigarros de fumar,
tão felizes os cigarros de viver,
… quando há uma mulher embrulhada numa folha amarrotada,

Feliz aquele que tem alguém para amar,
feliz aquele que tem um livro para ler,
feliz..., tão feliz aquele que tem um poema a crescer...
a crescer... no verbo desejar.



Francisco Luís Fontinha – Alijó
Domingo, 27 de Julho de 2014

sábado, 26 de julho de 2014

A Calçada do Adeus


Esta vida que não me esquece,
cai a noite e me absorve, e me evapora,
desço a calçada como poeira cansada,
e aos poucos, despeço-me do rio,
despeço-me da alvorada,
sento-me, e espero o regresso do amanhecer,
folheio um livro, leio um poema amaldiçoado,
dói-me o corpo, e esta vida que não me esquece,

Desenho uma gaivota apaixonada pelo silêncio do mar,
há uma cabana sem lareira, uma cabana atraiçoada,
e eu sentado, converso com a gaivota, converso com a cadeira...
sobre esta vida que não me esquece,
e me evapora,
folheio, folheio... e o livro do poema amaldiçoado... me deseja,
me leva para o solstício do beijo,
e sendo eu sou um ausente,
que não sente, que não ama...
pergunto-me... o que é o amor?
É uma cidade destruída? É uma canção com poemas de chorar?
que a vida não esquece, que a vida não me esquece... de me recordar...

Esta vida que não me esquece,
quando lá fora há estrelas à minha espera,
quando lá fora a gaivota apaixonada... chora,
porque foi maltratada, porque foi espancada...
pelo vento da clareira cinzenta,
que desce comigo a calçada, e... e me atormenta.


Francisco Luís Fontinha – Alijó
Sábado, 27 de Julho de 2014

O livro que arde, e não sente nada...


Há um beijo desgovernado,
há uma planície na frescura dos teus lábios,
um livro que arde, um livro que desiste de amar...
há silêncios com sabor a amanhecer,
olhares desatentos, olhares... olhares suspensos nas pálpebras da solidão,
há uma mulher com asas de papel na varanda do terceiro andar,
não chora,
não... não olha para ninguém,
há um beijo desgovernado,
uma manhã prisioneira que teima em acordar,
há um veleiro perdido no mar,
onde habita o marinheiro amor,

Há um corpo que procura os rochedos da dor,
e finge ser a preia-mar, e finge ser a cidade inacabada, sem braços, sem mãos...
sem... sem madrugada,

Há uma planície na frescura dos teus lábios,
um rio que desce a montanha sem perceber o significado da paixão,
há peixes assassinados,
peixes... peixes coloridos no cansado coração,
há um terceiro andar, e há uma rua com cabelos de oiro,
uma eira esquecida nas noites de luar,
uma estrada,
o livro que arde, e não sente nada,
há... há uma mulher... há uma mulher amada...
sem o saber, sem o sentir,
há um beijo,
um beijo que não sabe sorrir...


Francisco Luís Fontinha – Alijó
Sábado, 26 de Julho de 2014

sexta-feira, 25 de julho de 2014

O tambor do desassossego


Quando o tambor do desassossego entoa no coração da sanzala,
há uma palavra reescrita na pele húmida do amanhecer...
leio... leio SAUDADE...

Sento-me junto ao pequeno charco acabado de nascer,
puxo de um cigarro,
e finjo ver o mar a regressar da sombra das mangueiras,
as pequeníssimas películas de cacimbo alicerçam-se aos meus dedos,
ao longe, mulheres... e fogueiras,
e missangas de medos,
saltitando nos braços cansados de um esqueleto de papel,
oiço o bater fulgurante do zinco conta a solidão de um menino chorando,

Um dia a guerra o levará,
sua mãe morta rezará no altar da areia branca do faroleiro de pedra,
os meus dedos minguam quando um cadáver de insónia poisa no meu cigarro...
e espero... e não regressa o mar,
desce um corpo de prata dos coqueiros envelhecidos,
há uma palavra reescrita na pele húmida do amanhecer...
leio... leio SAUDADE...
e adormeço sem me apetecer,

Em criança brincava com silêncios e um velho triciclo em madeira,
acreditava nas flores,
acreditava que um dia..., que um dia voava como os pássaros,
envelheci, e o meu cigarro terminou quando um paquete de rebuçados atracou em mim,
transeuntes com pesadíssimos caixotes em madeira,
choravam...
e círculos de espuma saltavam à corda no cais dos caixotes em madeira...
perdi-me, e hoje... e hoje sento-me junto ao pequeno charco acabado de nascer,

O mar não regressará nunca,

E,

Quando o tambor do desassossego entoa no coração da sanzala,
há uma palavra reescrita na pele húmida do amanhecer...
leio... leio SAUDADE...

E leio sofrer!


Francisco Luís Fontinha – Alijó
Sexta-feira, 25 de Julho de 2014

quinta-feira, 24 de julho de 2014

“O Senhor Anónimo”


O teu corpo quando absorvido pela perspectiva cavaleira do desejo,
a tua pele tracejada nas ruelas da minha solidão,
sinto-te porque existe à minha volta uma lanterna de silêncios,
sinto-te porque em ti crescem as héderas nocturnas da cidade das sílabas,
e cruzam-se as palavras nos comboios que descem a montanha do amor,
há rochedos enfeitados com pálpebras de papel amarrotado,
olhares que me aprisionam e me transformam em apitos de suor,
na areia da insónia alguém desenha beijos,
e o sonho os leva, leva-os... até deixarem de ser beijos,
depois, depois os beijos ressuscitam a aparecem como algas imperfeitas que o medo alimenta,
o corpo flutua na morte clandestina do homem com rosto de triângulo,
e um dos catetos abra-se à hipotenusa,

Na lapela, um nome, ilegível, gatafunhos...
apelidei-o de “o senhor anónimo”,
cerca de quarenta anos, apátrida, e marinheiro de profissão,

O teu corpo, pouco ou nada me interessa,
embrulhado em geometria... apenas sobressaem os segmentos de recta do cansaço,
o barco onde trabalho e habito... há muito deixou de ter flores e cartas com corações...
a palavra “amo-te” não faz sentido, não pertence ás marés por onde navego,
peço que regresse o vento,
e vem a tempestade,
peço a tua pele tracejada... e sou apedrejado por crianças em fúria, como se eu fosse o culpado pela tristeza das lâminas da madrugada,
e não tenho onde me esconder,
precisava apenas de um pedaço de pano,
um cortinado envenenado,
o teu corpo, pouco ou nada me interessa,
comparado com a multidão de sombras que me acorrentam ao cais dos tentáculos de néon.


Francisco Luís Fontinha – Alijó
Quinta-feira, 24 de Julho de 2014