sábado, 29 de junho de 2013

Os silêncios envergonhados

foto: A&M ART and Photos

Deixei de ti os silêncios envergonhados
alicerces maleáveis com cabeça de madeira
deixei em ti o sulco prometido das rosas envelhecidas
cantigas da madrugada
cantigas... palavras húmidas
que o teu corpo absorve
como uma esponja recheada de lâmpadas de halogéneo...
como uma mão emprestada,

Cantei de ti
as cantigas profanadas nos jardins da insónia
gostei de ti em ti depois das estrelas sobre a cama nocturna com olhos de luar
entrarem em mim
deixei de ti
os silêncios envergonhados...
deitados os maleáveis sonos programados pelo relógio portátil em paredes ocas de gesso...
e um coração de ti parece romper as cordas que prendem a tenda do circo ao chão de areia,

Cansei-me de ti
em ti
por mim
entre colunas de granito e traves velhas de castanho...
cansei-me
das palavras ocas das paredes húmidas
em corações de gesso?
Mentiras de ti quando acordam em mim os silêncios envergonhados...

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

Os muros de ontem em loucuras de hoje

foto: A&M ART and Photos

Saltávamos o pequeno muro todos os finais de tarde, após a escola, às vezes com milímetros de fome a brincar nos estômagos vazios, nós, nós existíamos apenas porque tínhamos de existir, era-nos proibido desistir, era-nos proibido entrar no quintal do senhor António Joaquim de Alicate, homem robusto, homem rude, e de poucas palavras,
Um dia
E das poucas palavras, as poucas palavras, se não servissem para resmungar com três ou quatro miúdos, serviriam para quê? O quê? Não acredito, queixava-se ele, um dia, quando ia para entrar no palheiro e viu-me sobre o telhado, em pés de lã à procura de uma velha bola de futebol, gritou-me
Agora salta!
Claro que eu, incrédulo comigo mesmo, saltei, caí, não me magoei... e consegui desprender-me das suas garras de lobo solitário, Palavras? Para quê? E ainda hoje, durante a noite, quando abro a janela e espero que regresse, sinto-as
Agora salta,
Sinto-as ao redor do meu esguio pescoço, como se fossem finos arames suspensos entre duas árvores, eu, incrédulo, vestido de palhaço, percorro o arame, e sinto-as, as mãos do senhor António Joaquim de Alicate e a triste bicicleta da menina Alzira, que ainda hoje, quase com noventa anos
Olá, menina Alzira... está boazinha?
Claro que sim, responde-nos, e desde o salto mortal entre quintais, que ela, que ele, que nós, nós que supostamente não era para existirmos, inacreditavelmente, existimos, e ainda hoje, em todos os finais de tarde, saltamos os quintais invisíveis, alguns deles foram degolados por escavadoras e bulldozers, tal como o senhor António Joaquim de Alicate, robustos, de poucas palavras, para quê palavras?
Agora salta...
E eu saltei, voei sobre as espigas de trigo, e em vez de cair
Ainda hoje sinto-lhe as mãos no meu esguio pescoço,
E em vez de cair sobre uma leve cama de espigas de trigo com lençóis de cansaço, não, não ouvi as palavras dele, não percebi as palavras dela,
Ainda hoje
Menina,
Ainda hoje
Salta,
Ainda hoje
Olá, menina Alzira... está boazinha?
Um dia
E das poucas palavras, as poucas palavras, se não servissem para resmungar com três ou quatro miúdos, serviriam para quê? O quê? Não acredito, queixava-se ele, um dia, quando ia para entrar no palheiro e viu-me sobre o telhado, em pés de lã à procura de uma velha bola de futebol, gritou-me
Agora salta!
E eu, ainda hoje, não consegui poisar o meu corpo no doce chão, nós, três ou quatro, de quintal em quintal, saltávamos os pequenos muros, e eu, ainda hoje, tenho saudades do senhor António Joaquim de Alicate e da menina Alzira, e eu
Sobre o telhado do palheiro...
E eu, hoje, sinto-lhe as mãos no meu esguio pescoço.

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

Das palavras não escritas

foto: A&M ART and Photos

Sentia as tuas mãos a sufocarem-me das palavras não escritas
promessas incompreendidas quando havia uma manhã de desejo
correndo encosta abaixo
afogando-se nas veias submersas em saliva que escondiam sombras do meu pobre esqueleto
ossos e pó deles envenenados pelas imagens a preto-e-branco dos meus lábios descoloridos,

Amargos
sofridos quando sabíamos que era o último reencontro após a partida em direcção ao nada
sabíamos e não o confidenciamos a ninguém
apenas trocávamos verdes olhares de verdes olhos
em frente à inocência saudade,

Sentia a tuas mãos de xisto
vagueando no meu corpo de árvore em papel paixão
poisavam pássaros em ti
e ouviam-se as tuas dolorosas canções de amor
caminhando sobre a praia-mar...

Uma floresta de carnívoras madrugadas acordava dentro de nós
quando abrias os olhos e sabias que já tinha partido
descia a janela com vista para as rochas mergulhadas no mar...
e procurava da noite dispersos gemidos de ti
que eu pensava serem versos nas folhas mortas do poeta,

O livro escrevia-se conforme se extinguiam as luzes dos nossos gemidos
formatávamos os nossos discos rígidos até percebermos que já não éramos nós
eu deixei de saber quem eras
e tu, tu percebias que eu não passava de um mero cortinado de areia
a brincar numa rua de Luanda...

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha