domingo, 1 de outubro de 2023

O carrasco

 

Tragam o carrasco

Estou pronto para ser castigado

Sempre estive pronto

Tragam o carrasco

Com os seus alicates

Com as suas garras

Tragam o maldito carrasco

Do dia que nasce

Ao dia que morre

Pronto

Sempre estive pronto para as suas garras

 

Tragam o carrasco

E o saco com os pecados

Tragam vinho

Tragam pão

Uísque

E charros

Tragam o carrasco e castiguem-me

Me atormentem

E me matem

Se Deus quiser

 

Quando cair a noite

Tragam o carrasco

E os seus métodos de tortura

Na fome que dura

Que dura na mão do carrasco

Tragam o carrasco

Tragam a chuva

Que eu mereço

O castigo

Do carrasco

 

 

01/10/2023

Ementa

 Pedra cinzenta

Isenta

Que lamenta

Ser cinzenta

Onde me sento e leio uma pequena ementa

Senta

Nesta pedra

Meu amor de água-benta

 

01/10/2023

O eu sofrido

 Sirvo-me e pergunto-me de que me sirvo

Se não há nada para me ser servido

Penso

E nada há para pensar

A não ser

Servir-me

Do que não me serve

 

Sirvo-me do quarto com serventia

Com acesso à casa de banho

Um par de sapatos

Que já não me servem

E servir-me daquilo que deixou de me servir

 

Sentado

Não me serve

Nem me serve o devido ser-me servido

No entanto

Penso

Que já nada me serve

 

Nem este pobre lenço

Que só servia para esconder baba e ranho

Não

Não me serve ficar sentado

Servindo-me disto e daquilo

Coisas que às vezes

Servem

Que outras vezes

Deixam de servir

 

E sirvo-me quando me pergunto

De que me serve tudo

Não me servindo nada

Não me servindo o pouco

Penso

Que não me serve pensar

Porque me cansa

Porque me faz chorar

Pensar

Que me sirvo

Não me servindo

Tão pouco sei se me posso servir

Desse pedaço de bolo

Que não me serve para nada

Apenas para saciar a minha fome

Que tem nome;

Serve-me por favor algo que ainda não tenha sido servido.

O sofrido servido do triste sofrido

O eu, o eu fodido.

 

 

01/10/2023

Instante

 Instantes que nos separam

Dos instantes constantes

Da vida em pequenos instantes

 

Do nada ao tudo

Até ao pequeno instante

Lua que acorda num instante

Morre no outro meio instante

E a alma que chora

No outro instante

 

Instantes que nos separam

Dos instantes constantes

Que a vida no dá

Que a vida nos tira

Num pequeno instante

 

Instantes que nos separam

Dos instantes constantes

Da vida em pequenos instantes

Nesta vida de instantes

 

 

01/10/2023

sábado, 30 de setembro de 2023

Vénus do fogo

 Neste livro

Onde escrevo todos os dias

Onde escondo o dia

E as tristezas da noite

Dentro deste livro

Uma mulher em suicídio

Sucumbe à deliria loucura

Nos olhos do mar

 

Deste livro

Sem olhos de mar

Neste livro onde escrevo todos os dias

Onde escondo o frio

De onde liberto aquele rio

Que se perdeu no nome

Que não dorme

Que tem fome

 

Este livro

Que ninguém lê e que ninguém percebe

Porque da janela deste quarto

Se vê o mar

E se ouve o mar

Com barcos de papel

E de brincar

 

Dentro deste livro

Uma mulher

Que grita

Chora

E se revolta com a vida

Com o poema

Com a poesia

E com o cabrão do poeta

Que sou eu

Aquele que escreve este livro

 

Aquele que finge gostar do dia

Este livro

Este pequenino livro

(o vinil termina, levanto-me e continuo mergulhado em Mão Morta)

Que se faz tarde

Dentro deste livro

Pequenino

Para a menina e para o menino

Neste livro

Onde escrevo

E escondo

O que escrevo

 

Vénus do Fogo

Livro das pérolas de ninguém

Este livro que todos o têm

Menos eu

Que sou fidalgo

Que o escrevo

E que nunca o vou ter

Neste livro

Onde habita a Vénus do Fogo

E os monstros de querer

Um dia

Talvez

Que este livro seja gente

Talvez esta cidade seja este livro

E aquela gente

Filhos deste livro

Nas mãos de Deus

Ou nas mãos de um outro qualquer impostor

 

Que este livro seja sempre um livro

A luz nos teus olhos

Que este livro seja a bala

Que rompe pela madrugada

E cai na cama de um coitado magala

 

Que este livro além de ser gente

Seja a gente

Que lê este livro

Que limpa o cu às folhas deste livro

Sem o arraial prazer do simplificado parafuso de pressão…

Morreu enfartado com chocolates

Escreveu este livro

E escondia sarna nos tomates

 

E o seu pequenino testamento

Tudo o que tenho

Todos os meus livros

São para alimentar este livro

Onde se esconde a Vénus do Fogo

E todas as putas-flores que não gosto

 

Não gosto deste livro

Mas escrevo este livro

Detesto cebola e alho

E como arroz com letras arroz com palavras arroz com arroz nas mentes…

Desdentadas

Escrevo este livro

Acordo

Aos poucos, este livro

Este pequenino livro

Que escrevo

Onde se esconde a Vénus do Fogo

A fogueira da minha aldeia

E uma candeia com azeite…

 

Liberta-se deste livro

Aquele que é feliz e escreve o outro livro

Porque este livro

Não me pertence

Não me pertence

Escrevo este pequeno livro

Sofrido

Pequenino

Com sono

Às vezes

Este pobre menino

 

Neste livro

Que finge orgasmos na madrugada

Que bate o pé

E abre a janela

E lança-se da janela

E voou e voa

Sobre o mar

E sobre ti

Deste livro

No livro que senti

O peso do papel

O motor a estibordo

Lançando fumo para a cabine do Comandante

Sobre a ponte

Um morto e três feridos graves

 

Deste neste livro

Que livro que dia em livro no desenhado livro

Foi-se

Morreu

E acordou três dias depois

Mais bêbado do que quando tinha adormecido…

Sofrido

Sorrindo a corações de areia

A janela coitada

Deixou pendurada a cabeça

E foi até à varanda fumar um pobre cigarro de sono

Sentou-se finalmente este livro

Finalmente em frente ao altar da vergonha

Onde reza este livro

Onde grita este livro

Sofre este pobre livro…

 

E sente ronha deste livro

Escrevo este livro

Dou vida a este livro

Papel engomado com o ferro de engomar

Vincos nas calças

Camisa do avesso

Por causa das bruxas

E lá vem este livro

Que ainda à pouco

O foi

E o será

Vadio

Sem nome

Mergulhado naquele rio

 

Despeça-se do menino

Se faz favor

Olhe que nunca mais vai ver o menino

Escreva que dia é hoje

Sábado

À lareira do sono

Sábado minguante enrolado numa lua luz

Abraçado a uma lua luz

Que bate à porta

Truz

Truz truz

Truz truz truz

Caiu-lhe a porta sobre o pé

Descreveu um círculo de luz com olhos verdes…

E zás

Hoje é o Comandante deste Navio apelidado de LIVRO.

 

 

30/09/2023


 

Morte

 Em pó me transformarei

Do pó nasci e me criei

Poeira

Grãos de areia que fogem da peneira

Pedaços de nada

Que se vestem de madrugada

Sem eira nem beira

 

Nem nada na algibeira

Em pó serei

Do pó acordei

Sem saber o preço do luar

Ou quanto custa um shot de noite

No pó inventei

Poemas que sonhei

Poeira… envelhecida poeira

 

Na poeira que serei

Serei pó

Serei húmus com sabor a ausência

Da ciência

Em viver antes de ser pó

Antes de ser poeira

E estar só

 

Em pó me transformarei

Do pó nasci e me criei

Poeira

Sem saber o preço da morte

Que está pelos olhos da morte

Do pó à poeira

Eu serei

Areia

Mar e poeira

 

 

30/09/2023