sábado, 30 de setembro de 2023

Vénus do fogo

 Neste livro

Onde escrevo todos os dias

Onde escondo o dia

E as tristezas da noite

Dentro deste livro

Uma mulher em suicídio

Sucumbe à deliria loucura

Nos olhos do mar

 

Deste livro

Sem olhos de mar

Neste livro onde escrevo todos os dias

Onde escondo o frio

De onde liberto aquele rio

Que se perdeu no nome

Que não dorme

Que tem fome

 

Este livro

Que ninguém lê e que ninguém percebe

Porque da janela deste quarto

Se vê o mar

E se ouve o mar

Com barcos de papel

E de brincar

 

Dentro deste livro

Uma mulher

Que grita

Chora

E se revolta com a vida

Com o poema

Com a poesia

E com o cabrão do poeta

Que sou eu

Aquele que escreve este livro

 

Aquele que finge gostar do dia

Este livro

Este pequenino livro

(o vinil termina, levanto-me e continuo mergulhado em Mão Morta)

Que se faz tarde

Dentro deste livro

Pequenino

Para a menina e para o menino

Neste livro

Onde escrevo

E escondo

O que escrevo

 

Vénus do Fogo

Livro das pérolas de ninguém

Este livro que todos o têm

Menos eu

Que sou fidalgo

Que o escrevo

E que nunca o vou ter

Neste livro

Onde habita a Vénus do Fogo

E os monstros de querer

Um dia

Talvez

Que este livro seja gente

Talvez esta cidade seja este livro

E aquela gente

Filhos deste livro

Nas mãos de Deus

Ou nas mãos de um outro qualquer impostor

 

Que este livro seja sempre um livro

A luz nos teus olhos

Que este livro seja a bala

Que rompe pela madrugada

E cai na cama de um coitado magala

 

Que este livro além de ser gente

Seja a gente

Que lê este livro

Que limpa o cu às folhas deste livro

Sem o arraial prazer do simplificado parafuso de pressão…

Morreu enfartado com chocolates

Escreveu este livro

E escondia sarna nos tomates

 

E o seu pequenino testamento

Tudo o que tenho

Todos os meus livros

São para alimentar este livro

Onde se esconde a Vénus do Fogo

E todas as putas-flores que não gosto

 

Não gosto deste livro

Mas escrevo este livro

Detesto cebola e alho

E como arroz com letras arroz com palavras arroz com arroz nas mentes…

Desdentadas

Escrevo este livro

Acordo

Aos poucos, este livro

Este pequenino livro

Que escrevo

Onde se esconde a Vénus do Fogo

A fogueira da minha aldeia

E uma candeia com azeite…

 

Liberta-se deste livro

Aquele que é feliz e escreve o outro livro

Porque este livro

Não me pertence

Não me pertence

Escrevo este pequeno livro

Sofrido

Pequenino

Com sono

Às vezes

Este pobre menino

 

Neste livro

Que finge orgasmos na madrugada

Que bate o pé

E abre a janela

E lança-se da janela

E voou e voa

Sobre o mar

E sobre ti

Deste livro

No livro que senti

O peso do papel

O motor a estibordo

Lançando fumo para a cabine do Comandante

Sobre a ponte

Um morto e três feridos graves

 

Deste neste livro

Que livro que dia em livro no desenhado livro

Foi-se

Morreu

E acordou três dias depois

Mais bêbado do que quando tinha adormecido…

Sofrido

Sorrindo a corações de areia

A janela coitada

Deixou pendurada a cabeça

E foi até à varanda fumar um pobre cigarro de sono

Sentou-se finalmente este livro

Finalmente em frente ao altar da vergonha

Onde reza este livro

Onde grita este livro

Sofre este pobre livro…

 

E sente ronha deste livro

Escrevo este livro

Dou vida a este livro

Papel engomado com o ferro de engomar

Vincos nas calças

Camisa do avesso

Por causa das bruxas

E lá vem este livro

Que ainda à pouco

O foi

E o será

Vadio

Sem nome

Mergulhado naquele rio

 

Despeça-se do menino

Se faz favor

Olhe que nunca mais vai ver o menino

Escreva que dia é hoje

Sábado

À lareira do sono

Sábado minguante enrolado numa lua luz

Abraçado a uma lua luz

Que bate à porta

Truz

Truz truz

Truz truz truz

Caiu-lhe a porta sobre o pé

Descreveu um círculo de luz com olhos verdes…

E zás

Hoje é o Comandante deste Navio apelidado de LIVRO.

 

 

30/09/2023

Sem comentários:

Enviar um comentário