Neste livro
Onde escrevo todos os dias
Onde escondo o dia
E as tristezas da noite
Dentro deste livro
Uma mulher em suicídio
Sucumbe à deliria loucura
Nos olhos do mar
Deste livro
Sem olhos de mar
Neste livro onde escrevo todos os dias
Onde escondo o frio
De onde liberto aquele rio
Que se perdeu no nome
Que não dorme
Que tem fome
Este livro
Que ninguém lê e que ninguém percebe
Porque da janela deste quarto
Se vê o mar
E se ouve o mar
Com barcos de papel
E de brincar
Dentro deste livro
Uma mulher
Que grita
Chora
E se revolta com a vida
Com o poema
Com a poesia
E com o cabrão do poeta
Que sou eu
Aquele que escreve este livro
Aquele que finge gostar do dia
Este livro
Este pequenino livro
(o vinil termina, levanto-me e continuo mergulhado em Mão
Morta)
Que se faz tarde
Dentro deste livro
Pequenino
Para a menina e para o menino
Neste livro
Onde escrevo
E escondo
O que escrevo
Vénus do Fogo
Livro das pérolas de ninguém
Este livro que todos o têm
Menos eu
Que sou fidalgo
Que o escrevo
E que nunca o vou ter
Neste livro
Onde habita a Vénus do Fogo
E os monstros de querer
Um dia
Talvez
Que este livro seja gente
Talvez esta cidade seja este livro
E aquela gente
Filhos deste livro
Nas mãos de Deus
Ou nas mãos de um outro qualquer impostor
Que este livro seja sempre um livro
A luz nos teus olhos
Que este livro seja a bala
Que rompe pela madrugada
E cai na cama de um coitado magala
Que este livro além de ser gente
Seja a gente
Que lê este livro
Que limpa o cu às folhas deste livro
Sem o arraial prazer do simplificado parafuso de
pressão…
Morreu enfartado com chocolates
Escreveu este livro
E escondia sarna nos tomates
E o seu pequenino testamento
Tudo o que tenho
Todos os meus livros
São para alimentar este livro
Onde se esconde a Vénus do Fogo
E todas as putas-flores que não gosto
Não gosto deste livro
Mas escrevo este livro
Detesto cebola e alho
E como arroz com letras arroz com palavras arroz com
arroz nas mentes…
Desdentadas
Escrevo este livro
Acordo
Aos poucos, este livro
Este pequenino livro
Que escrevo
Onde se esconde a Vénus do Fogo
A fogueira da minha aldeia
E uma candeia com azeite…
Liberta-se deste livro
Aquele que é feliz e escreve o outro livro
Porque este livro
Não me pertence
Não me pertence
Escrevo este pequeno livro
Sofrido
Pequenino
Com sono
Às vezes
Este pobre menino
Neste livro
Que finge orgasmos na madrugada
Que bate o pé
E abre a janela
E lança-se da janela
E voou e voa
Sobre o mar
E sobre ti
Deste livro
No livro que senti
O peso do papel
O motor a estibordo
Lançando fumo para a cabine do Comandante
Sobre a ponte
Um morto e três feridos graves
Deste neste livro
Que livro que dia em livro no desenhado livro
Foi-se
Morreu
E acordou três dias depois
Mais bêbado do que quando tinha adormecido…
Sofrido
Sorrindo a corações de areia
A janela coitada
Deixou pendurada a cabeça
E foi até à varanda fumar um pobre cigarro de sono
Sentou-se finalmente este livro
Finalmente em frente ao altar da vergonha
Onde reza este livro
Onde grita este livro
Sofre este pobre livro…
E sente ronha deste livro
Escrevo este livro
Dou vida a este livro
Papel engomado com o ferro de engomar
Vincos nas calças
Camisa do avesso
Por causa das bruxas
E lá vem este livro
Que ainda à pouco
O foi
E o será
Vadio
Sem nome
Mergulhado naquele rio
Despeça-se do menino
Se faz favor
Olhe que nunca mais vai ver o menino
Escreva que dia é hoje
Sábado
À lareira do sono
Sábado minguante enrolado numa lua luz
Abraçado a uma lua luz
Que bate à porta
Truz
Truz truz
Truz truz truz
Caiu-lhe a porta sobre o pé
Descreveu um círculo de luz com olhos verdes…
E zás
Hoje é o Comandante deste Navio apelidado de LIVRO.
30/09/2023