sexta-feira, 21 de julho de 2023

Cartas

 Antigamente escrevia cartas, hoje, escrevo silêncios.

Sempre quis ser artista; a minha mãe talvez acreditasse que eu um dia fosse estilista, pois passava tardes inteiras, em Luanda, a desenhar e a costurar vestidos para um parvalhão de um boneco, que ainda hoje desconheço a razão de o ter baptizado com o nome de chapelhudo, e sendo eu contra os nomes das coisas e das pessoas, pergunto-me

Porquê?

Porquê chapelhudo…

Não o sei.

Como deixei de saber tanta coisas,

A tarde fugia, e eu corria e conseguia apanhá-la junto à capelinha, metia-a no bolso, e sorria, e foi aí que aprendi a desenhar.

Antigamente escrevia cartas, hoje, hoje queimo cartas e lanço-as ao vento, e o vento as leva para o mar.

O meu pai nunca duvidou que eu um dia viesse a ser artista, e não se enganou, de arte em arte, fui artista maior da parvoíce e estupidez, graças a Deus e à insistência da minha mãe com ele, cá estou eu,

Noutras artes.

Antigamente escrevia cartas, hoje, procuro a tarde que fugia e eu corria, corria…

E agarrava-a junto à capelinha.

E voavam, voavam,

Como silêncios envenenados.

Quase fui trapezista, sim, trapezista, não fosse a minha paixão pela cachopa trapezista, e que queria que eu a acompanhasse de terra em terra, num qualquer circo ambulante,

Não fosse essa minha paixão, desfalecer, quando olhei para o céu,

E ela,

Ela voava, voava…

E pensei,

E voa, e voa…

E prefiro ser poeta.

Antigamente escrevia cartas, hoje, hoje pinto trapezistas nas telas, desenhos os papagaios que a minha mãe me ensinou, escrevo, escrevo para o vento, e para o mar.

Antigamente escrevia cartas, hoje, hoje não escrevo cartas, mas sinto raiva, das cartas escritas.

Antigamente escrevia cartas, hoje, hoje conto as cartas que escrevi.

 

 

 

21/07/2023

Solidão

 Tão só, me sinto,

Tão só… nas noites de insónia,

Se te toco, ignoras-me

E inventas desculpas,

Que até penso ter uma doença contagiosa…

Tão só,

Me sinto nesta casa assombrada,

Enquanto lá fora, as estrelas sorriem para mim…

Tão só, me sinto,

Eu e as minhas palavras e os meus traços.

 

21/07/2023

quinta-feira, 20 de julho de 2023


 

Traços sem nome



Olho este desenho,

Olho-o como se fosse um filho que não tenho,

Olho-o e não percebo de onde vêm estes traços,

Malditos às vezes,

Que ninguém percebe, como eu,

Mas eles são filhos da minha mão,

Portanto,

Meus filhos são.

 

Olho-os, depois,

Depois começam a acordar as palavras,

Tal como os traços,

Malditas também,

Às vezes,

São tantas as palavras,

Que aproveito meia-dúzia delas…

E as restantes,

Lanço-as ao mar,

Escondo-as.

 

Olho este desenho,

E sinceramente,

Não vejo nada,

E o pouco que vejo,

Vejo um tolo, um tolo que vai à janela,

E fica a olhar a piquena a comer chocolates,

O Esteves em volta do seu cigarro…

E eu,

E eu e o senhor Álvaro de Campos…

A olharmos para a Tabacaria.

 

Depois vou ao mar,

Retiro as palavras que tinha escondido…

E escrevo,

E escrevo parvoíces…

Tais como os desenhos que faço…

 

E feliz eu, que sou filho de Deus, feito à sua imagem…

Se não o fosse,

O Pacheco diria, (Estás fodido, pá).

Já o nosso saudoso João César Monteiro…

Bem…

(Quero que as más-línguas se fodam, que se fodam).

E eu,

E eu aqui a olhar para este pobre desenho,

Só,

E ausente…

Que acabou agora mesmo de nascer,

Que não lhe vou dar um nome,

Ninguém deveria ter um nome,

E mais uma vez,

Olho-o, olho-os,

E nada,

Não vejo nada,

Nem ninguém.

 

O Pacheco que ainda não está contente,

(Puta que os pariu),

E daqui a pouco é o pôr-do-sol,

Regressa a noite,

A noite tem estrelas,

As estrelas são lindas,

E a vaca,

A vaca não dá leite.

 

E mesmo depois de eu morrer,

Estes desenhos andarão por aí,

Por algures por aí…

Alguns prisoneiros de uma parede,

Outros acabarão numa fogueira…

E a maioria…

No cu de alguém.

 

(Olho este desenho,

Olho-o como se fosse um filho que não tenho,

Olho-o e não percebo de onde vêm estes traços,

Malditos às vezes,

Que ninguém percebe, como eu,

Mas eles são filhos da minha mão,

Portanto,

Meus filhos são).

 

E se são ou não o são só a mãe o saberá,

Neste caso,

A minha mão.

 

E ela diz-me que sim,

Olha, não vês pelos olhinhos!

Claro que sim,

Vejo pelos olhos e oiço pelos ouvidos…

Se assim não fosse,

Também eu seria um traço,

E um dia,

Acabaria no cu de alguém.

 

 

 

Alijó 20/07/2023

Francisco Luís Fontinha

Desejo

 Escrevo no teu doce olhar,

Amo-te,

Desenho nos teus lábios de mel,

Desejo-te,

Pego no teu cabelo selvagem,

Dançando no vento,

E procuro o mar,

Do mar meu alimento…

 

20/07/2023

quarta-feira, 19 de julho de 2023

Arte

 Amo-te

Amo-te nesta escuridão estrelar

Em teus olhos de alegria mar,

Amo-te quando te veste de veleiro…

E corres para os meus braços,

Em palavras,

Das palavras,

Deste silenciado mar.

 

Amo-te

Amo-te quando regressa da noite o teu olhar,

E nos teus doces lábios de mel…

A minha voz se deita,

Dorme…

E inventa nos teus lábios

A sabedoria,

A filosofia…

E a arte de te amar.

 

 

19/07/2023

Machimbombo de esperança

 Somos o quê, pai,

Morremos de quê, pai,

Somos o que nos vestem,

E do pouco que sobra, o quê, pai,

Quando um machimbombo de esperança brincava no teu olhar,

E de quê,

Somos o quê, pai,

Somos a Lentidão de Kundera?

Ou a piquena dos chocolates…

Do poema A Tabacaria do senhor Álvaro de Campos,

E de quê, pai,

Os chocolates.

 

No entanto,

Eu,

Tu,

Ele,

Ela,

Nós…

Todos mentíamos,

Tu mentias-me,

Eu mentia-te,

Ela desconfiava,

Menos uma mentira,

 

E o quê, pai,

O que somos, pai,

Somos o pão,

Somos o poema,

Somos a poesia,

E, no entanto,

Eu mentia-te…

E tu tinhas a perfeita consciência que estavas a ser aldrabado,

O teu filho, malabarista, artista e poeta…

Inventava estórias no teu sorriso,

Falso sorriso,

E depois,

E de quê, pai,

E esqueci-me do perfume das tuas acácias…

 

Somos o quê, pai,

Somos átomos que pensam,

Átomos que amam,

Que morrem…

E nascem,

E de quê, pai, o que somos, pai,

Depois, durante a noite, desenhava o teu cabelo, com o meu olhar…

E era lindo…!

Eu ficava esquecido numa cadeira fantasma,

Mais cansado do que tu, pois tu estavas com uma grande pedrada de morfina, e feliz,

Tu falavas-me de pássaros,

Eu, inventava pássaros,

Perguntavas-me se era dia,

Noite…

Depois arrependias-te…

Deixa lá, tanto faz… não tenho pressa,

 

Nem eu, o quê, tinha pressa,

De quê, pai, o quê…

Que somos.

 

 

19/07/2023