Mostrar mensagens com a etiqueta pai. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta pai. Mostrar todas as mensagens

domingo, 23 de julho de 2023

Retracto

Olho o teu retracto

E olha…

Quem diria

Estás com muito bom aspecto

E até pare que os anos não passaram por ti.

 

Olho o teu retracto.

Escondo no teu retracto, o meu retracto

Um qualquer

Pode ser no Mussulo

Pode ser aqui

Ou ali.

 

Olho o teu retracto

E olha…

Quem diria

Parece que os anos se esquecem de ti

E se lembram de mim.

 

Olho o teu retracto

E confesso-te

Que começo a odiar o teu retracto

E todos os meus retractos.

 

Olho o teu retracto

E não vejo nada

Nem um sorriso disfarçado

Tão pouco

Os segredos da madrugada.

 

Olho o teu retracto

E vejo o meu rosto abraçado a um baloiço

E enquanto me transmites a força necessária para eu voar…

Eu olho o teu retracto

E no teu retracto

Escuto os silêncios do mar.

 

 

 

23/07/2023

Luís

quarta-feira, 19 de julho de 2023

Machimbombo de esperança

 Somos o quê, pai,

Morremos de quê, pai,

Somos o que nos vestem,

E do pouco que sobra, o quê, pai,

Quando um machimbombo de esperança brincava no teu olhar,

E de quê,

Somos o quê, pai,

Somos a Lentidão de Kundera?

Ou a piquena dos chocolates…

Do poema A Tabacaria do senhor Álvaro de Campos,

E de quê, pai,

Os chocolates.

 

No entanto,

Eu,

Tu,

Ele,

Ela,

Nós…

Todos mentíamos,

Tu mentias-me,

Eu mentia-te,

Ela desconfiava,

Menos uma mentira,

 

E o quê, pai,

O que somos, pai,

Somos o pão,

Somos o poema,

Somos a poesia,

E, no entanto,

Eu mentia-te…

E tu tinhas a perfeita consciência que estavas a ser aldrabado,

O teu filho, malabarista, artista e poeta…

Inventava estórias no teu sorriso,

Falso sorriso,

E depois,

E de quê, pai,

E esqueci-me do perfume das tuas acácias…

 

Somos o quê, pai,

Somos átomos que pensam,

Átomos que amam,

Que morrem…

E nascem,

E de quê, pai, o que somos, pai,

Depois, durante a noite, desenhava o teu cabelo, com o meu olhar…

E era lindo…!

Eu ficava esquecido numa cadeira fantasma,

Mais cansado do que tu, pois tu estavas com uma grande pedrada de morfina, e feliz,

Tu falavas-me de pássaros,

Eu, inventava pássaros,

Perguntavas-me se era dia,

Noite…

Depois arrependias-te…

Deixa lá, tanto faz… não tenho pressa,

 

Nem eu, o quê, tinha pressa,

De quê, pai, o quê…

Que somos.

 

 

19/07/2023

quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

Os barcos da minha vida

 A vida

A minha vida

É uma tela

Uma tela que herdei das mãos de Deus

E que aos poucos

Fui pincelando,

 

Com cores,

Com riscos,

Com olhares

E cheiros,

Com o silêncio do mar,

 

(Deus, criador do céu e da terra, do mar e dos pássaros, das árvores e da paixão, tudo, dizem, Deus criou)

 

E a primeira paixão

De que me lembro

Foi a paixão dos barcos,

Barcos que o meu pai me levava a ver

Todos os fins-de-semana

Ao porto de Luanda,

 

Pequeno que eu era

E amedrontado com todo aquele tamanho

E esplendor

(a minha mão muito agarrada à mão dele)

Deliciava-me

Deliciava-me com os cheiros a Nafta

Deliciava-me com os olhos dos barcos

E com os braços dos barcos

Que quando regressava a casa

Sentava-me debaixo das mangueiras

E sonhava em beijar e abraçar

(todos aqueles barcos),

 

E da tela da minha vida

Que nunca consegui terminar

Porque está sempre em construção

Hoje mais parece um barco

(entre portos e marés, entre o ontem, o hoje e o amanhã)

Um barco que às vezes sorri

Outras

Outras vezes que chora

Um barco sem nome

Como a tela da vida

(porque todos os barcos têm um nome)

E corre calçada abaixo

E corre calçada acima,

 

Lembro-me muito bem

Em criança

De puxar um barco pelas ruas

E rua acima

E rua abaixo

Lá andava eu

O menino que trocou os calções

Por roupas muito pesadas

Por calçado muito pesado

E fartei-me deste mar

E fartei-me desta pobre maré…

 

E voltando à minha vida,

 

A vida

A minha vida

É uma tela

Uma tela que herdei das mãos de Deus

E que aos poucos

Fui pincelando,

 

Algumas vezes

Pincelei-a de alegria

Muitas mais vezes

Pincelei-a de tristeza

Mas como sou daltónico

Não importam as cores da tela da minha vida

(se são de cor alegria ou se são de cor tristeza),

 

(e voltando aos barcos porque a minha vida é pouco interessante)

 

E enquanto os olhava

Nunca imaginava

Nem sonhava

Um dia

Qualquer dia

Brincar dozes dias

Ou dormir doze noites

Nos braços de um barco,

 

Mas brinquei,

E dormi,

E hoje acredito se este enorme paquete tivesse naufragado

Isso sim

Hoje seria o menino dos calções mais alegre de todas as sanzalas de prata,

 

E a minha pobre mãe

Acreditava que Deus estava do nosso lado

Que era nosso aliado,

 

(como ela estava tão enganada)

 

Como ela estava enganada.

 

 

 

 

 

Alijó, 04/01/2023

Francisco Luís Fontinha

domingo, 8 de novembro de 2020

Uma equação de fé, no teu peito.

 

O fim de tarde, minha querida.

A cidade vomita palavras abstractas que só a tempestade sabe prenunciar.

As flores poisadas na tua lápide parecem lágrimas de pássaros esquecidos nas árvores de ontem,

Procuro por um corpo, nada encontro e, apenas uma esquina de luz, longe, bem longe, acorda das sombras onde te deitas.

Vai distante o teu olhar de bom dia pela manhã,

Erguem-se as abelhas da colmeia colorida pelo silêncio da despedida,

Um SIM, um NÃO, ou… um apenas talvez,

Se deita no teu peito.

Visito-te todos os dias,

Conversamos,

Falamos sobre poesia,

Pintura,

Falamos das tardes inquietas de Luanda… ao final do dia.

Nada me falta, minha querida.

Tenho tudo e, nada tenho.

Não me apetece abrir a ponta de entrada, para este cubículo desorganizado, entre livros e rochedos, mesmo assim, nunca consegui, depois de te despedires de mim, olhar o mar.

Abro a janela, o mar longínquo deseja-me como um louco e, ainda hoje, minha querida, tenho medo da (lhá).

Um pilar de areia cai sobre a calçada.

Lágrimas de papel vivem disfarçadas no teu rosto; hoje, não choras.

O sangue invisível que corria nas tuas veias, hoje, é apenas uma fina lagoa azul suspensa na tarde, nada mais, minha querida, nada mais…

Hoje és apenas uma equação de fé que deambula pela casa descalça;

O medo.

Amanhã, quem sabe, “O fim de tarde, minha querida”.

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 08/11/2020

domingo, 26 de janeiro de 2014

… e todos os sábados existe uma amoreira por beijar...

foto de: A&M ART and Photos

(Tinha prometido que nas próximas semanas não publicaria nada, poesia, textos... mas as palavras são mais fortes do que a dor...)


Converso com as vozes inaudíveis das montanhas ínfimas em ti
e percebo que o medo absorve-te como se fosses um alimento comestível na boca do Inferno,
oiço as sílabas distorcidas que brincam nos teus lábios de sebe envergonhada como eu,
oiço das montanhas ínfimas em ti os segredos nossos vividos entre o silêncio e a preguiça do desassossego,
habitas as transversais listras negras do temido sono que acordam todas as manhãs na garganta do sofrimento,
vives porque pareces um mendigo travestido de mendigo,
vives porque és o verdadeiro mendigo de mim... que ficou em ti de quando éramos poetas vagabundos sobre as árvores dos jardins sem braços em prata,
postais e revistas,
livros e pornografia barata, simples, submersas as tuas mãos em veludo fino,
cortinados que abanam e cintilam nas vozes nocturnas do amor,
amar-te como se ama uma lareira poética nos seios das finas lâminas da tristeza,
deixamos ficar a alegria nas sarjetas do póstumo amanhecer...

(… e
e fazemos de conta que em todos os sábados existe uma amoreira por beijar...
tu),

E fazemos de conta que as estradas que me levam a ti são em puro chocolate,
e fazemos de conta que dos teus beijos saltitam mãos de espuma,
areais de seda e janelas com olhos de vidro,
e...
… e fazemos de conta que em todos os sábados...
que hoje não existe vida nos teus brancos cabelos,
que hoje a noite parece um mórbido cobertor de Inverno sobre os joelhos teus quando ainda acreditas nos desejos pergaminhos da laranjeiras,
as palavras são propositadamente embriagadas para esquecermos a cinzenta estória sem livros para pintarmos,
temos em nós os vestígios carris do aço disfarçado de recta paralela,
a trigonometria da dor quando do envidraçado muro da desgraça uma rosa se submete aos teus encantos,
és lindo, és tu que albergas as minhas desventuras montanhas ínfimas em ti...
… e todos os sábados existe uma amoreira por beijar... tu... o pai que sempre quis ter.


Francisco Luís Fontinha – Alijó
Sábado, 25 de Janeiro de 2014