O comboio
Com destino a Santa
Apolónia…
Dará entrada na linha dois
dentro de momentos,
Uma Donzela
De cabelo pincelado de
vento
Pergunta-me se tenho
isqueiro…
Digo-lhe que não fumo
Que nunca fumei…
Nem fumarei
Coisas estranhas,
Ela diz-me que para ter
isqueiro
Não preciso de fumar
Porque posso transportar
na algibeira uma esferográfica…
E nem saber escrever,
(pensei: ela é muito
inteligente)
Passeio-me pela rua Augusta
Com um par de asas…
E que nem voar sei,
Pergunta-me ela…
O que são as pirâmides da
insónia…
Respondo-lhe que nem sei
o que são pirâmides…
Quanto mais essas coisas
da insónia,
Claro que não
Voar dá muito trabalho.
Um gato aproxima-se
Dá-me um beijo na face
esquerda
E segreda-me que está loucamente
apaixonado por mim
(e eu que odeio gatos e
os gatos também me odeiam)
Mulheres vendem o corpo a
retalho
Por catálogo
Bebem uísque de Sacavém…
E dizem-se felizes
E dizem-se…
Tanto como eu…
Junto ao rio há um barco
em apuros
Os meus cigarros parecem
lareiras depois da meia-noite
E do livro que poisa na
minha secretária…
Oiço a voz do silêncio,
Senhores passageiros
O comboio com destino a Santa
Apolónia
Dará entrada na linha
dois…
E partirá
Se chegar a partir…
Às dezanove horas e dois
minutos,
Hesito
Ela hesita
Fico na dúvida se sigo
destino
Ou se eu e ela desertamos…
E vamos apanhar o comboio
Com destino a uma pensão
barata…
Que nas paredes em gesso
Tem frestas e um pequeno crucifixo,
E eu detesto
Odeio
Escrever o mais lindo
poema de amor
No corpo de uma
desconhecida
E ter Cristo suspenso num
pedaço em madeira…
A olhar-me,
Fico sem jeito.
É como estar a fazer amor
com a vizinha…
E o marido a olhar-me,
Poisei a esferográfica
Peguei num lenço em papel…
E aprisionei os olhos de
Cristo,
Na tarde seguinte
O saudoso guarda Saraiva
Vai a minha casa
Vai a minha casa e
pergunta à minha mãe se eu estou…
Claro que não
Senhor Saraiva…
Ele nem sabe voar…
Ele foi para a tropa!
O saudoso guarda Saraiva
Um pouco comovido
Diz à minha mãe que eu
ainda não tinha aparecido no quartel…
Ela fica aflita
Depois mais calma…
E responde-lhe…
Talvez ele fosse voar nos
braços de alguém…
Talvez ele esteja a rezar
A Cristo…
Ou a escrever um poema
nos lábios da noite
Numa qualquer parede
De uma pensão de merda
Onde só pernoitam putas
E gajos a vender o corpo,
Do Tejo
E da Calçada da Ajuda
Muitas más notícias…
Ficaria de castigo duas
semanas
Ausente de casa,
Fiquei feliz,
Muito feliz…
Entro no carro
Coloco o sinto de
segurança…
E logo após este começar
em marcha lenta
De Cais do Sodré… para
Santa Apolónia
Começo a sentir a mão do
oficial graduado…
A acariciar-me
E repentinamente
Fiquei na dúvida
Se lhe partia os cornos
Ou abria a porta do carro
E me lançava contra o Tejo…
E que dia de merda
Pensava eu
Junto ao Tejo…
As doze badalas nascem no
quinto esquerdo
São duas da madrugada no
rés-do-chão direito
A temperatura está
agradável…
O comboio com destino a
Santa Apolónia está quase de partida…
Na linha dois
E no duzentos e doze
Cristo consegue
finalmente libertar uma das mãos
Retira o lenço em papel
que lhe aprisionava o olhar
E em gritos histéricos…
TENS UM ERRO DE
ORTOGRAFIA NA MAMA ESQUERDA DA TUA DESCONHECIDA…
Fiquei sem jeito
Um pouco envergonhado
E cuidadosamente pego na minha
mão direita com a ajuda da minha mão esquerda…
E que sim…
Em vez de escrever
desejo-te
Escrevi “desejou-te”
Ainda mais envergonhado
fiquei,
Enquanto o comboio
Aos pucos
Despede-se de nós…
E quando acorda a manhã…
Estava só…
A desconhecida tinha ido
apanhar o comboio das oito da manhã…
Para Santa Apolónia.
02/07/2023
Francisco Luís Fontinha