domingo, 2 de julho de 2023

Na vergonha de estar vivo

 

(tão triste Mário sobre o tejo um apito.

AL Berto)

 

 

Sobre este Tejo

A cânfora vergonha de estar vivo

De escrever merdas que detesto…

E que alguém me obriga a escrever…

Porque apenas lhe empresto a mão,

 

Sobre este Tejo

Quando descia o silêncio da tarde

Enquanto uma menina brincava com uma boneca invisível…

Eu

Eu percebia que este rio me puxava…

Para as suas profundezas,

 

Sobre este Tejo

Na vergonha de estar vivo

Sem saber se quando regressar a noite…

Tenho em mim palavras

Para afugentar as estrelas…

Ou tenho em mim…, metáforas de pano para arremessar ao pôr-do-sol,

 

Sobre este Tejo

Das luzes incandescentes que apenas a noite consegue desenhar…

Este lindo silêncio de verniz

Com pigmentos de saudade

Com tudo o que tive

Daquilo que não quero ter e odeio…

Uma luz cinzenta poisa sobre mim…

E percebo que apenas sou um pedacinho minguo de nada…

Nos lábios deste rio…

Que me puxa…

E me vai assassinar de vergonha...

 

 

 

02/07/2023

Noite

 

Podia ser noite,

Podia ser dia…

Dia sem noite,

Noite sem o dia,

 

De noite não durmo,

E de dia…

Mal consigo comer,

 

Podia ser noite,

Noite com poesia,

Dia sem literatura,

Sem dia,

Sem ternura,

Podia,

 

Podia ser noite,

Dia…

Podia ter amigos,

Podia…

Não os tenho,

Não me importo de não os ter…

Podia ser noite,

Podia ser dia…

 

Podia ser noite,

Dentro de mim,

Sempre noite,

Sempre…

 

 

 

02/07/2023

 

(anos mais tarde, recordo agora, cresceu-me uma pérola no coração, mas estou só, muito só, não tenho a quem a deixar.

AL Berto)

 

 

 

Meu querido,

Percebo que tiveste a sorte de ter uma pérola no coração,

E que devido à tua solidão…

Não tinhas a quem a deixar…

 

Eu, meu querido,

Nunca tive uma pérola no coração,

Nem diamante…

Nem coisa alguma,

Nem coisa nenhuma…

E sabes, meu querido, não tenho coração…

Mas se tivesse coração,

E se no meu coração existisse alguma coisa…

Também não tinha a quem a deixar…

 

Porque estou só,

Muito só…

 

 

 

Francisco

sábado, 1 de julho de 2023

A primeira lágrima da manhã

 A coitadinha da moeda de vinte e cinco escudos, só, só na algibeira do magala, sem que ela tivesse percebido que dentro em breve estaria abraçada a uma pequena ranhura de uma cabine,

Os cortinados negros, inventando a noite, quando ainda era tarde, final de tarde, junto ao rio, ao longe,

Um petroleiro de sono, uma jangada em cio procurando engate, que me convidava às vezes,

E eu aceitava,

Que outras tantas mais vezes,

Me ignorava,

E eu…, ficava a olhar…

O Tejo,

Que eu às vezes, que eu às vezes, recusava,

Nesta triste vida de comandante deste navio,

Deste gigantesco petroleiro,

Ouvia-se no silenciar da noite inventada, o som da moeda de vinte e cinco escudos em pequenas descidas acentuadas,

Depois,

Depois uma mulher despia-se, aos poucos, uns… aproveitavam o silêncio para se masturbarem, outros nem por isso, e os outros…

Contemplavam,

O quê?

Um pedaço de carne esquecido debaixo de um pinheiro, o puto foi entregue à Ermelinda, e que, lá anda...

Contemplar,

O quê?

Contemplar uma mulher só, mais cansada da vida, de que a vida cansada dela, e, no entanto, comtemplavam-na…

Contemplar,

O cigarro e o cheiro intenso a sémen,

Às vezes, às vezes ouviam-se pequenos gemidos, dentro destas lâmpadas silenciadas que um louco qualquer desenhou na geada.

Às vezes, às vezes percebia-se no olhar desta mulher, percebia-se a fome, a porrada invisível que um chulo qualquer invisível lhe dava, muitas vezes, às vezes, até nos seios se percebia a tristeza desta mulher,

E, no entanto,

Apenas com vinte e cinco escudos…

Às vezes,

Às vezes, às vezes dos seios destas mulheres, desciam lágrimas de cansaço, desciam lágrimas de saudade,

Saudade da infância,

Saudade dos amigos da escola,

Saudade das ruas antes de nascer o sol.

E, no entanto,

Contemplavam-na,

Contemplar, o quê?

Contemplar duzentos e seis ossos, alguns já em mau estado de conservação, as pintinhas nos braços e afins, da agulha,

Que chutavam heroína,

Que fumavam heroína…

E mesmo assim, havia quem as contemplasse por uns míseros vinte e cinco escudos.

E ao fundo da cabine, o Tejo, o cheiro do Tejo, e enquanto se preparavam para bater mais uma…,

Encerrava-se o óculo, ficava escuro, ficava escuro dentro da cabine e do outro lado do Tejo, um navio escondia-se da tristeza.

Contemplar,

Contemplar uma mulher sofrida, às vezes quase criança, outras quase nem uma coisa nem nunca seria outra coisa, que não fosse,

Criança,

E mulher.

E contemplavam-na,

Tal como o beijo contempla os lábios, ou…, quando a maré entra pela janela, e ela, aquela mulher inventada, por apenas vinte e cinco escudos…

Contemplavam acreditando que do outro lado do Mundo, um apito perdido…, procurava a primeira lágrima da manhã.

 

 

 

01/07/2023

Francisco Luís Fontinha


 Se algum Psicólogo/a se der ao trabalho de tentar interpretar os meus desenhos, não me importo, apenas não venham dizer que eu não nasci em Angola; sim, nasci em Luanda.

Noite de Primavera

 Era a noite mais bela

De todas as belas

Belas noites

De

Primavera,

Que se escondiam na floresta,

Um dia,

Um dia vestiu-se de dia,

Saiu à rua…

E percebeu que não queria ser mais dia…

Que desejava voltar a ser noite,

A mais bela noite

De

Primavera,

Que se escondia na floresta.

 

Era a noite mais bela,

De todas as belas noites…

Quando as noites ainda transportavam na algibeira

Um pedacinho de silêncio

E uma pedra cinzenta,

A mais bela pedra cinzenta…

De todas as pedras cinzentas que se escondiam na floresta…

Pertinho da aldeia.

 

Era a noite,

Era a noite mais bela

De todas as belas noites que se escondiam na floresta…

Um dia,

Um dia percebeu…

Que o dia apenas é dia,

Porque alguém o apelidou de dia,

Se o tivessem baptizado de noite,

Hoje o dia,

Era a noite…

A noite mais bela

De todas as noites de Primavera

Que se escondiam na floresta…

 

 

 

01/07/2023

Francisco

Meu amigo

 

Quero lá eu saber do Universo,

Meu grande amigo…

A falta que tu me fazes,

Enquanto tu e eu…

Desenhávamos sorrisos de silêncio

Nas primeiras horas da madrugada…

E tu, tu tinhas razão…

Em todas as palavras que me ensinaste.

 

Agora, meu grande amigo, há quem apregoe que fiquei louco...

Como se a loucura se vendesse dentro de um cartuchinho

À dúzia ou à meia-dúzia…

À porta dos sombreados telhados de prata…

 

Das nossas conversas…

Mas falando do Universo,

Quero lá eu saber, meu grande amigo,

Do infinito Universo…

Quando tenho problemas mais complexos de que a extinção do Universo…

Pois então que se extinga, e já.

 

Vê tu, vê tu meu grande amigo,

Escrevo poemas falando da Lua

Desenhando o luar nas mãos de minha amada…

E sabes tão bem como eu…

Que a Lua não é nada…

É apenas poeira e rochas.

 

Vê tu, vê tu meu grande amigo,

Escrevo poemas dando nomes às estrelas…

Quando tu e eu, quando tu e eu sabemos tão bem…

Que as estrelas são apenas uma enormidade de plasma…

Com luz própria.

 

Escrevo poemas ao mar,

Meu grande amigo…

E sei que minha amada transporta o mar nos lábios…

E agora percebo-te tão bem…

Tão bem…, meu grande amigo…

Ambos sabemos que o mar é apenas água…

Água salgada…

E é tão azul…

Como o azul dos meus olhos.

 

 

 

01/07/2023

Francisco