Francisco Luís Fontinha – Alijó.
quinta-feira, 25 de maio de 2023
O poeta de Deus
(feliz dia de África)
Não sei,
Não sei como será o
Inverno
No Inferno,
Não o sei…
Mas… quem o saberá?
Farto-me de escrever
poemas a Deus…
E Deus está literalmente
a cagar-se para mim,
Não me importo,
Quero lá eu saber de
Deus,
Tal como ele,
Quer lá Deus saber de um tal
de Fontinha…
Não o sei,
Quem o saberá…
Vocês sabem como será o
Inverno no Inferno?
E de um tal de Inferno
disfarçado de Inverno?
Não, não me interessa…
Em criança, até um determinado
período da minha vida…
E que vida,
Meu Deus,
Que rica vida eu tive…
Não sabia o significado
de Inverno.
E era muito feliz!
Muito mesmo…
Tão feliz que…
No meu Inverno,
Trazia os meus calções e
as minhas sandálias de couro…
Que couro, meu Deus,
Que calções…
E quer lá saber Deus dos
calções e das sandálias…
Deus,
Deus passa todo o seu
tempo a escrever poesia…
Entre calções,
Tão feliz que fui…
Muito feliz,
E do meu Inverno,
Que Inverno,
Aquele meu Inferno,
De aprender o significado
de Inverno…
Quando eu…
Tudo esqueci,
As sandálias, os malditos
dos calções, o Mussulo, tudo,
Tudo mesmo.
Durante muitos anos,
Muitos mesmos,
Queria perguntar ao meu
pai porque choravam as acácias da minha infância…
E tudo,
Já não me lembrava de
nada…
Apenas…
Machimbombo…
Que coisa, esta, do
Inverno ser Inferno…
E Deus, o poeta, ser tudo…
Tudo o que não fui,
Tudo o que não quero ser,
Ser o quê…
Mais um, por aí…?
E chorei.
E chorei sem perceber que
chorava…
Que apenas me recordava,
De ter chorado,
Não porque me apetecesse
chorar…
Mas chorava,
Tinha medo de me perder,
E um dia, perdi-me, por
aí…
Um dia, meu Deus…
Um dia…
Chorava porque tinha
frio,
Chorava porque tinha
medo,
Chorava porque me sentia
só…
Qualquer coisa que nasceu
comigo, não me pertencia…
Tinha morrido,
E até hoje,
Hoje… nada,
Até hoje não sei a coisa
que morreu,
E que até hoje,
Não consigo dizer que
coisa é essa…
E se não há coisa,
Não haverá cadáver,
Nem haverá crime…
(peço desculpa pela ausência,
mas assuntos do foro privado chamavam-me)
A minha mãe,
Coitada da minha mãe…
Tal como eu,
Também ela chorou muito…
Muito…
Éramos assim…
Como deslocados,
Ausentes de corpo e alma,
Não,
Nunca acreditei na
existência da alma…
Nunca.
A minha mãe,
Coitada da minha mãe…
Eu chorava,
E eu sabia que a minha
mãe chorava porque eu chorava…
Éramos ausentados,
Deslocados da terra e do
primeiro pigmento de cor…
Abraçava-me a ela,
E ela mentindo-me,
dizia-me… um dia, um dia meu filho…
Um dia tudo vai melhorar…
Um dia,
Um dia cairá chuva na
minha mão,
Um dia,
Um dia…
Não sei,
Não sei como será o
Inverno
No Inferno,
Não o sei…
Mas… quem o saberá?
Farto-me de escrever
poemas a Deus…
E Deus está literalmente
a cagar-se para mim,
Não me importo,
Quero lá eu saber de
Deus,
Tal como ele,
Quer lá Deus saber de um tal
de Fontinha…
Ou do Inverno no Inferno,
Do Inferno a infernar o
Inverno…
Quer lá ele saber…
A não ser…
Que Deus seja accionista
do Inverno e credor do Inferno…
Ó pá,
Deus é comunista…!
Deus não é nem nunca será
capitalista…
Veremos, um dia…
Um dia, um dia veremos.
Francisco
25/05/2023
O inferno em dia
Queimarei, um dia, os
meus poemas,
Queimarei, um dia, todos
os meus desenhos
E todas as minhas
fotografias.
Queimarei, um dia, este
corpo que me transporta…
Deste corpo onde habitam
as flores em papel
E números de porta,
Números de polícia,
Queimarei, um dia, todos
estes livros…
E todos estes livros
E todos estes livros…
Estes livros,
As palavras que escrevo,
Os desenhos que faço…
O céu…
Se a minha vida foi um inferno,
Queimarei, um dia, o meu
dia,
Acenderei, um dia, a
minha noite,
Noite em dia,
Do dia sem noite…
Quando a noite
Rouba ao dia…
O dia da despedida.
Queimarei, um dia, as
asas que me deram,
O fato espacial com que
visto a noite,
Antes de acordar…
E foder o dia,
De dia…
Até um dia…
Até que um dia,
Terei …
O mar.
Francisco Luís Fontinha
25/05/2023
O silêncio
Não sei se um dia terei
medo do escuro,
Do escuro, escuro…
Não do escuro da noite,
Sempre amarei a noite,
As estrelas,
O silêncio do escuro…
E o escuro da solidão.
Luís
25/05/2023
quarta-feira, 24 de maio de 2023
Paisagem de Inverno
(desenho de Francisco
Luís Fontinha)
Não tínhamos nada
Do nada que tínhamos.
Tirando isso
Éramos todos felizes,
Eu desenhava e escrevia à
porta de casa
(fazia poemas e desenhos
ao domicílio)
Ela
Ela vendia cigarros para
engordar
E lembrei-me logo
Se eu estou tão magro…
Vai uns cigarrinhos…
e…
nada,
Fumei
Fumei
Fumei
Sempre magro e elegante
como um varão de aço
Quatro ferros de dezasseis
Oito ferros de doze
Nos estribos ferro de seis
Afastados dez centímetros,
Sentava-me
A menina passava
Olhava-me
Sorria-me
E…
Faça-me um poema
Meu artista…
Que artista sei que fui
Que artista sempre serei
De várias artes
De vários ofícios,
E lá lhe fiz o poema…
Menina
Desculpe
É para o seu namorado
Ou
Namorada?
É para a minha amada,
Compreendi
Perfeitamente
Vamos recomeçar a aula,
Então é assim,
Dos teus olhos aquela
paisagem de Inverno
Abraçava-te na lentidão
de um relógio invisível
Abraçava-te tanto
Que nos perdíamos dentro
de um cortinado de sono
Abraçava-te e mexia no
teu cabelo de silêncio
Enrolava-o no dedo
E sentia o meu seio no
teu ombro
Aos poucos
Morriam as horas
Mas muito antes
Já tinham partido todos
os segundos
E todos os minutos
Apenas uma hora
Uma qualquer hora
Ficou junto a nós…
E poisou no teu púbis,
Abraçava-te sabendo que
Deus desligou agora mesmo…
A luminosidade das cerca dos
dez sextilhões de estrelas
Cem biliões de galáxias…
(e há parvos e parvas que
julgam ser o centro de tudo, quando são o centro de nada)
Abraçava-te e ao mesmo
tempo
Questionava Deus…
Porquê?
E dos teus olhos
Minha galáxia das manhãs
em geada
Dos teus olhos
As primeiras lágrimas da
tua pele…
E com medo que a única
hora que tínhamos…
Morresse também
Beijo-te loucamente
Até que uma nuvem de luz
poisou nos teus lábios
Da tua querida que te
ama,
Olhe
Menina
Não tenho muito jeito
para estas coisas
Mas…
Olhe…
Foi o que me saiu
Ela pega na pequena folha
em papel
E enquanto lia
Percebi que no rosto dela…
Brincavam pequeninas
gotículas de saudade…
Chorou
Olhou-me…
Perfeito
Quanto é?
Olhe
Pelo poema são cinco
euros
E pela assinatura…
Quarenta cêntimos de
euros
Pagou-me
E
…
O beijo
Constrói-se aos poucos
O beijo é como o acordar
das borboletas
O beijo sai do poema
Salta a rede de vedação…
E procura incessantemente
a boca…
Palavras
Palavras meu amor
Palavras
Dias
Noites
E mais palavras
Menos as outras palavras
O poema é assim mesmo…
É como o beijo
É como a chuva
Nem todos beijam
E quase todos se molham,
E troco palavras por
beijos
Beijos por livros usados
Livros usados por outros
livros usados
E troco o silêncio
Só
E apenas
Por outro silêncio,
Chateia-me
Revolta-me
Saber que existem
crianças
Que não são crianças como
eu fui…
Eu
Que fui desejado
Que fui muito amado
E feliz
Ainda eu
Às vezes
Me queixo da puta da vida…
E que dirão estas
crianças da puta da vida e de um Deus pacientemente sentado numa pedra cinzenta
a olhar-nos…
Não tínhamos nada
Do nada que tínhamos.
Não tínhamos nada…
Mas tínhamos tudo…
Tínhamos amor.
Alijó, 24/05/2023
Francisco Luís Fontinha
Verso
(desenho de Francisco
Luís Fontinha)
Há um verso infinito
Um infinito verso que
vagueia em mim
Um verso sem nome
Apenas sou um verso
Um pequeno verso
Sou apenas um verso
Um verso que come…
Um verso que grita
Um verso que levita…
Há um verso infinito
Um infinito verso que
vagueia em mim
Um verso esquelético
Esquelético verso que é
este
Um verso que sofre
Que sofre em verso
Há um infinito verso
Um verso infinito
Um verso que vagueia em
mim…
Há um verso
Em reverso
Quando este pobre verso
Dorme em verso.
Francisco
24/05/2023
As crianças
Um dia, o vento, um dia o vento será poema…
E dos teus lábios de mar,
Erguer-se-á a montanha.
Um dia, um dia a
escuridão vestir-se-á dos teus olhos,
E deixará de haver noite,
E nunca mais haverá luar…
Um dia, um dia deixará de
haver crianças pobres com fome maltratadas imundas analfabetas violadas e
molestadas…
Um dia, um dia haverá só
crianças. As crianças.
Francisco
24/05/2023