terça-feira, 2 de maio de 2023

Do outro lado da rua

 São as flores do meu jardim, são as palavras em flor, que semeio no meu jardim, são as flores do meu jardim e as palavras em flor que semeio no meu jardim as responsáveis pelo aprisionamento do teu sono, e tudo isto,

E tudo isto enquanto a terra não se cansa de girar, gira e é tão gira e é tão bela, a terra ou o meu jardim ou outra coisa qualquer…, gira em torno de um eixo imaginário, roda à velocidade de trinta quilómetros por segundo,

E, no entanto,

As flores do meu jardim e as palavras que semeio no meu jardim, estão lá, quietinhas, e o teu sono,

Escondido na minha mão,

Depois, depois pego no sono, coloco-o cuidadosamente nos teus lábios de mel, olho-te, olho-te da mesma maneira que olho o mar…

Em pequenos silêncios,

No teu cabelo, os maravilhosos barcos em papel colorido, e depois de poisar o sono nos teus lábios de mel, afago o mar do teu cabelo, separo os barcos rapazes dos barcos raparigas, e espero,

Espero que acorde o pôr-do-sol.

Desenhas um sorriso na alvorada, uma âncora de néon que não me deixa construir todos os meus papagaios em papel que ainda me faltam construir, e são tantos, ainda, meu Deus… tantos papagaios em papel,

Da janela nada virá. Nem regressa o vento das tempestades de silêncio, nem regressam as papoilas da clareira, nem tão pouco, vê tu, meu amor, nem tão pouco regressarão as primeiras lágrimas da madrugada,

E se eu pudesse,

O sono sorri-me,

O teu sono, claro,

O teu sono sorri-me, eu sorrio-lhe, e o filho de ambos,

Sorri,

E das suas gargalhadas, vejo o meu sono e o sono dela e o sono de ambos, todos, em busca de um pedacinho de mar (e de outro sono) com odor a desejo, a música, a música bloqueia-nos as mãos, e momentaneamente, e momentaneamente é impossível escrever um abraço na janela do prazer, os cigarros vão matar-me, mas pensando bem, tudo nos mata, até porque todos nós nascemos para morrer,

E uns morrem mais depressa de que outros, mas o que interessa,

Todos morrerão, como morreram as minhas sandálias em couro que usava na minha infância, em Luanda.

O barco, cansado, um barco rapaz, salta do mar do teu cabelo e deita-se junto a nós, aos nossos pés, ainda seguras o pedacinho de sono nos teus lábios de mel e em breve uma nova alvorada nascerá com as palavras semeadas no meu jardim, gosto deste quadro, gosto deste quadro que não me canso de o olhar a que dei o nome de paixão,

O barco, o barco rapaz, coitado dele, o barco, o barco rapaz, sabe que brevemente todos os buracos negros deixarão de ser negros (não será esta uma forma de racismo? Buracos negros…) tantos, olha tantos…

E são tão belos e mágicos e tudo o mais, todos os buracos negros do Universo, e vê tu, meu amor, dizem que existe no Universo quarenta quintilhões de buracos negros, meu amor, quarenta quintilhões…

(nem o vizinho do segundo esquerdo com o seu berbequim faria tantos)

E, no entanto, guerreamos por milímetros de terra em comparação com o tamanho de todos estes buracos negros e o próprio tamanho do Universo, vês, vês agora porque penso tanto?

Da terra virá, um dia, ou talvez já cá esteja, o nosso Salvador; tudo isto, tudo, para te dizer, que talvez nessa altura já não exista cá nada,

Nem flores, nem poesia, nem tão pouco o silêncio, olha

E nem o dia…

Quem diria,

Que um dia,

Qualquer dia…

Ele virá nos salvar,

Mas… salvar o quê? Quando tudo já desapareceu…

Deitava-me no chão, no chão da minha infância, depois, de barriga para o ar, olhava a copa das mangueiras e sonhava,

Sonhava, escrevia, desenhava… e tudo apenas com um simples olhar, o avô Domingos

Luisinho.

E eu, nada.

Luisinho coisa alguma, pois chamo-me Francisco, fui baptizado e meço um metro e setenta e cinco centímetros,

(diga-se que o meu avô Domingos era a pessoa mais teimosa que eu conheci em toda a minha vida),

E quando me olho no espelho

Eu, nada.

Baptizado, tu?

Sim eu, sim…

Tenho as fotografias…

Olha… eu também tenho fotografias da lua

E?

E nunca fui à Lua.

O avô Domingos escondia-se entre os machimbombos, e eu

Eu, nada.

Sentado no chão a imaginar como poderia construir um jardim de silêncio no cabelo da minha mãe,

Mas, confesso, que até hoje, não fui capaz de construir esse jardim de silêncio no cabelo da minha mãe,

Acabou por perder o cabelo, levado pelo vento numa noite de luar…

Para o meu mar,

Não estou arrependido, não.

E enquanto podia estar a beijar-te loucamente, enquanto podia escrever no teu corpo todos os poemas que ainda não escrevi,

Penso.

Mas penso em quê?

E quando descobrirem que afinal Deus, o todo-poderoso, criador do céu e da terra e dos buracos negros (quarenta quintilhões de buracos negros), é afinal uma mulher?

Silêncio na sala,

Ai e tal,

Não gostaram,

Quando pensavam que Deus era homem, tinha tesão, e, no entanto, como poderia um homem desenhar e criar

A mulher…

Nenhum homem conseguiria desenhar e criar a mulher, poder podia, mas com tanta perfeição,

Não, não podia.

E de agora em diante,

Deus é uma mulher,

Porque apenas a mulher consegue de um pedacinho de nada, pouca coisa minúscula em comparação com os quarenta quintilhões de buracos negros que existem no Universo ou com os cerca de duzentos a quatrocentos biliões de estrelas existentes na nossa galáxia,

E, no entanto,

De um pequeno pedacinho, um quase nada de nada, acorda na tela da vida, o mais belo ser, de tudo e de todos e de todo o Universo,

O seu filho.

Filho, filha, que brincou, que passava tardes inteiras a rabiscar na parte esquerda do útero, pequenos círculos, pequenos quadrados, alguns números e letras,

E eu que o diga,

Passei lá tardes infinitas…

Como o Universo?

Como tudo na vida, meu amor.

O avô Domingos, sentado numa cadeira, porque tinha sofrido um grave acidente e uva muletas, eu, rapazote irrequieto e pior de que o Diabo, segundo a minha mãe, roubava-lhe as muletas e corria, corria, corria…

Até que…

Não tinha mais quintal para correr,

Luisinho. Luisinho.

E eu, nada.

Não é comigo.

O meu nome é Francisco.

Como sempre.

A alvorada ergue-se no mar do teu cabelo, os poucos barcos que ainda restam, um barco rapaz e dois barcos raparigas, olham-te, como eu te olho, e o desejo de ambos é o mesmo,

Luisinho.

Nada.

Depois, espalho o sono nos teus lábios de mel, muito devagarinho, em silêncio, até que adormeces na minha mão,

E sei que Deus, afinal, é

É uma mulher.

Só poderá ser uma mulher…

 

 

 

 

 

Alijó, 02/05/2023

Francisco Luís Fontinha

segunda-feira, 1 de maio de 2023

O nada de tudo ou nada

Não podemos ser tudo

Quando somos o nada menos o tudo,

Não podemos ser isto,

Não podemos ser aquilo

E aqueloutro,

Só porque queremos ser,

Isto e aqueloutro…

Quando queremos ser tudo…

Às vezes,

Muitas vezes

Somos o nada menos o tudo,

 

E o nada seremos sempre,

Sempre que lutamos por ser o tudo

Acabando por sermos o nada,

Não podemos ser pássaro

Se não tivermos asas para voar…

E podem dizer-me que um pássaro

Sem asas

É um pássaro,

Mas não é um pássaro qualquer… e não é a mesma coisa…

Um pássaro sem asas… é o nada,

 

Um pássaro que não canta,

É um pássaro,

E sem asas e sem cantar…

Continuará a ser um pássaro,

Mas…

Para que quero eu um pássaro,

Que não canta,

Que não voa…

Que apenas me serve de adorno

Sobre a mesinha-de-cabeceira

Onde guardo o isqueiro os cigarros e a pistola?

 

O nada,

Sempre que o tudo…

Não é o tudo,

É quase como o Universo…

Tão infinito tão belo tão escuro tão… tão nada,

De que me serve a beleza do Universo?

De que me serve se o Universo é finito,

Não finito…

Ou assim-assim…

Ou o nada…

De que me serve saber que toda a matéria do Universo se encontrava concentrada no espaço do tamanho da cabeça de um alfinete,

Vê lá tu… meu amigo, do tamanho da cabeça de um alfinete,

Depois…

Dizem que explodiu…

Expandiu-se…

E hoje…

O nada,

De que me serve saber de nublosas, buracos negros…

Buracos negros em vómitos,

Velocidade da luz,

Que fiquei com raiva de Einstein quando percebi que…

Vê tu, meu amigo,

Que teoricamente é possível viajar no tempo…

Odeio este gajo só por isto,

E por anda,

Imagina meu amigo, imagina viajarmos no tempo…

E encontrar aquela gaja horrível,

Aquele gajo…

Qualquer coisa,

De nada, obrigado…

Estes e outros fantasmas da noite,

E anda por aí, e anda por ali…

Anda por cá e vai cavalgando montes e vales,

Pedras e montanhas,

Noites de lua cheia…

E o nada,

O zero absoluto…

Zero graus celsius,

O quase tudo,

Ou o quase nada,

 

De que servem as palavras,

Os poemas…

E a madrugada?

Quando o sono,

Quando o sono apenas estorva…

Não deixa viver,

Não deixa respirar…

De quase tudo,

Ou de quase nada,

O que adianta passares a noite em discussão…

Se Deus,

Se Deus existe, existiu…

Ou nem por isso?

Se Deus criou alguma coisa…

Tu,

Tu vais morrer, existindo ou não existindo Deus,

Universo…

Ou buracos negros,

Ou o raio que os parta,

E nunca te esqueças, meu grande amigo,

Nunca te esqueças que setenta por cento do peso do teu corpo…

É água,

E o resto…

Merda,

E o quase nada,

Depois,

Temos a luz vestida de noite,

Lindíssima como as estrelas,

Lindíssima como sempre,

A sempre bela noite,

Bela e puta…

Também ela,

Tal como eu,

Um pedacinho de nada,

Uma molécula de desejo… nos olhos da alvorada,

Dentro de um recipiente…

A poeira do teu corpo,

 

Não,

Não podemos ser tudo,

Quando nasceste para ser o nada,

Quando nasceste travestido de equação matemática,

Complexa…

Ordinária equação complexa do terceiro grau ou do quarto grau…

Uma complexa equação diferencial,

De uma mão, da outra mão,

Acordam,

O nada,

E o tudo…

Ou o quase tudo,

E quase nada,

 

Sim meu amigo,

De que te servem as canções da alegre Primavera,

Quando a tua Primavera…

É quase nada,

Do nem quase tudo,

De entre o tudo e o nada,

 

Depois,

Depois dizem que estás louco,

Internam-te em psiquiatria…

E que sim,

Ao nascer do dia,

Coitado do rapaz…

Coitado dele,

E às vezes, nem tudo é o tudo,

Nem o nada é o tudo,

De nada,

Nem o nada…

Nem o tudo,

Não me digas que às vezes o nada é o tudo?

Ou quase tudo?

Quando não preciso de nada,

Não meu amigo,

Eu, eu sinceramente já não te digo nada,

Nada,

Que nem tudo é tudo,

E que nem tudo é o nada…

Quando tu,

Quando eu,

Meu grande amigo,

Somos o nada,

 

E o nada é um conjunto vazio,

Tem jarras com flores,

Tem poemas de amor e sedução,

Olha…

Tem um rio,

E tem o mar,

O mar de ninguém,

No mar de nada,

Quando o quase tudo,

Nasceu, cresceu, morreu…

Sendo o quase nada…

E do quase nada,

Vês apenas o sorriso do clitóris

Quando se ergue na tua mão… a doce madrugada…

Que de tudo,

Não tem nada.

 

 

 

 

Alijó, 01/05/2023

Francisco Luís Fontinha

Ser bombeiro

 (ao meu pai, Fernando Martins Fontinha, e a todos os seus camaradas; bombeiros)

 

 

Pai?

Sim, filho…

O que é ser bombeiro?

 

Ser bombeiro, meu filho…

Ser bombeiro, às vezes, é chorar em silêncio,

É estender a mão a uma pequena flor,

Quando esta, devido ao vento,

Se contorce em pequenos nadas,

 

Ser bombeiro, às vezes, é ser insultado,

Que não faz nada,

Que é um chulo…

Que passa o dia sentado,

E depois,

Bom meu filho…

Depois, um pai, uma mãe…

Alguém…

Chega a casa,

Vê o seu filho,

A sua filha,

Em dor,

Meu Deus…

A sua pequena flor,

Nos braços,

Ou no pavimento deitado,

A morrer…

Ou a sua casa a arder…

E a quem telefona este pai…

A quem telefona esta mãe…

Ao chulo, ao gajo que não faz nada e passa o dia sentado…

O bombeiro,

 

Ser bombeiro…

Ser bombeiro é ter uma amante,

Uma outra família,

Com muitos filhos e filhas…

Que às vezes,

Muitas vezes,

Esta é a sua principal família,

 

Ser bombeiro…

Ser bombeiro é sair muitas vezes de casa a correr,

Apressado,

Sem que ninguém lhe pergunte se já comeu,

Ou…

Ou se a sua família tem comida,

Mas o bombeiro,

Não hesita,

Não hesita para salvar,

Porque mesmo de barriga vazia,

Ele é forte,

Ele aguenta,

Aguenta as horas…

Aguenta os dias,

Aquenta as noites…

Porque é bombeiro,

 

Pai?

Sim, meu filho…

Algum dia sentiste medo?

Não meu filho…

Nem quando eu me despedi de ti?

Nem quando tu te despediste de mim…

És tão mentiroso, pai, tão mentiroso…

Como podes dizer isso,

Se todos temos medo,

Quando nos despedidos daqueles que amamos…

 

 

 

 

Alijó, 01/05/2023

Francisco Luís Fontinha

Ser mulher

 Ser mulher é…

Ser mulher é ser flor,

Poema em cada dia,

Ser mulher é poesia,

É alegria,

Ser mulher é…

Ser mulher é ser mãe,

É ser companheira,

Amante…

 

Ser mulher é…

Ser mulher é ser a tua escultora,

Ser mulher é ser vida,

Vida que labuta dentro dela,

Ser mulher é aquela que te carrega,

Que te carrega e leva pancada do marido do namorado do companheiro do amante… (da puta que os pariu)

Que de um pequeno nada,

Passas a ser…

Tudo, para ela,

 

Ser mulher é ser um pedacinho de silêncio,

Um olhar no interior de uma janela,

Ser mulher é a palavra,

O dia,

A noite,

A noite depois do dia,

Quando do dia…

Quando do dia,

Foge a noite,

E poisa na cabeça dela,

 

Ser mulher é…

Ser mulher é ser o jardim do paraíso,

Às vezes,

Às vezes ser mulher também é ser…

Uma complexa equação diferencial,

Ordinária,

Não, não a mulher…

Mas a equação,

 

Ser mulher é…

Ser mulher é literatura, é ser pintura… é ser mulher,

Ser mulher é a paixão,

Quando a paixão voa sobre o mar,

E se não fosse a mulher,

Que é a tua mãe…

Tu,

Tu nem sequer sabias desenhar…

O cheiro do mar,

Tu nem sequer sabias o que era o mar,

 

E tudo,

Tudo porque Deus,

Sim, Deus…

Teve a feliz ideia de desenhar a mulher…

No sorriso do mar.

 

 

 

Alijó, 01/05/2023

Francisco Luís Fontinha

Invisível corpo das tuas mãos em poesia



 (acrílico s/tela. 70cm x 100cm. Francisco Luís Fontinha – Alijó)

 

 

A espada que Dilacera o teu corpo

Em finas fatias de desejo

Do teu corpo mergulhado na insónia

Quando essa espada que trago na mão…

Poisa docemente nos teus lábios,

 

Das tuas mãos em poesia

Cansaço poema do masturbar silêncio…

Quantas estrelas

Meu amor

Se suicidam nos teus olhos invisíveis…

 

E fazem do Universo o sítio mais frio de todos os sítios frios e distantes…

Um pequeno relógio de paixão

Diz-me que são horas de partir…

De me erguer perante Deus…

E quem sabe… rezar que esta espada nunca morra em minha mão.

 

 

 

Alijó, 01/04/2023

Francisco Luís Fontinha

Criança

 

(acrílico s/tela. 70cm x 100cm)

 

 

E de encanto em encanto,

Ao triste momento,

Quando o desalento…

Sem tempo, traz o vento…

 

E abraçado ao vento,

Esta pobre criança sem alimento,

Brinca, sonha e chora… quando esta criança em sofrimento

Se esconde nos teus olhos de encanto,

 

Quando esta pobre criança sem alento,

Acorda do sono em pensamento,

E de encanto em encanto…

Esta pobre criança… é a criança do momento.

 

 

 

Alijó, 01/05/2023

Francisco Luís Fontinha

Flores da Primavera

 E que o vento nunca leve o teu cabelo

E o teu sorriso,

E que o vento te abrace,

Em cada doce madrugada,

 

E que do vento venham as flores da Primavera

Que escrevem em teus lábios,

E desenham nos teus lábios…

A Primavera,

 

E que o vento habite em teus sonhos

Das manhãs depois de acordarem,

E que o vento seja justo, seja sincero…

E que o vento nunca deixe…

 

Nunca deixe de te amar.

E que o vento seja eu,

Esta pobre flor sem madrugada,

E que o vento…

 

E que o vento seja apenas o vento,

O vento sem mais nada.

E que o vento…

E que o vento se deite no teu ventre,

 

E que do vento, acorde mais vento…

Mais vento em cada doce madrugada.

E que o vento nunca leve o teu cabelo

E o teu sorriso, e que o vento te traga o sono da alvorada.

 

 

 

Alijó, 01/05/2023

Francisco Luís Fontinha