terça-feira, 17 de janeiro de 2023

Vida

 Numa folha em papel branco

Podia escrever a minha vida

A minha vida

Como se a vida pudesse ser escrita

Como se a vida pudesse ser desenhada

Numa pequena folha em papel

Ou numa tela desmaiada,

 

Numa pequena folha desanimada

Nasceu a não sei quantos de Janeiro

Às sete e trinta da madrugada

Num feliz Domingo de Sol,

Cresceu

Brincou junto ao mar

Cresceu

Cresceu

E morreu a tantos do tantos

De dois mil e tantos…

A vida

A minha vida,

 

Uma merda de vida

Dentro das escarpas da solidão

A vida que é escrita

Na escrita que é vivida,

Vivida em cada mão,

 

Numa folha

Numa folha em papel branco

Quando no corpo um nenúfar de vento

Te leva a pequena folha

A pequena folha em papel branco…

E não tens onde escrever

A tua vida

A vida da tua pobre vida.

 

 

 

 

Alijó, 17/01/2023

Francisco Luís Fontinha

Metástase

 Há-de regressar a metástase do silêncio

Ao teu corpo desengonçado

Enquanto este rio de sangue

Corre para as umbreiras do amanhecer,

 

Há-de regressar deste rio sangrento

A fome e a peste

A solidão

E as amendoeiras em flor,

 

Há-de regressar a metástase do silêncio

Da fina flor desenhada

Deste pobre corpo

O corpo dependurado na manhã,

 

Há-de regressar

Regressar às sonâmbulas madrugadas

O sorriso suspenso nos teus olhos

Quando das metástases do silêncio

 

Este corpo

Corpo que dizem que me pertence

Que não acredito

Porque já nada me pertence

Se alegra na noite de mim.

 

 

 

 

Alijó, 17/01/2023

Francisco Luís Fontinha

Os cães os gatos e os outros

 

Nada tenho contra os animais, pelo contrário; adoro-os.

Mas começo a ver uma sociedade mais preocupada com o cão e com o gato de que, em alguns casos, com os filhos ou com os pais.

Conheço alguns casos. Deixam as crianças na escola, como se esta fosse um depósito de coisas, e depois o professor que se amanhe, deixam os pais no lar, e quase não os visitam…

E depois vão para o jardim passear o seu animal de estimação.

Vão almoçar ou jantar ao restaurante, dão o telemóvel aos filhos para estarem entretidos e caladinhos, e ao colo, têm o cão e o gato.

E eu pergunto se não seria melhor, em vez de adoptarem um cão ou um gato, adoptarem uma criança, num país com tantas crianças em lista de espera nas nossas instituições de solidariedade social

E há tantas crianças com fome, não de pão, mas de amor.

 

 

 

Francisco Luís Fontinha


Professores de Alijó em luta


 

Tal como no resto do País, também os professores de Alijó estão em luta.

Convém recordar aos actuais Governantes, e a todos os próximos Governantes, que sem uma escola pública de qualidade não há nem nunca haverá profissionais de excelência.

Tratar os professores e todos os profissionais da educação desta forma, este País nunca estará no pelotão da frente dos Países desenvolvidos.

 

Francisco Luís Fontinha

O poema sonhado

 

A noite é um poema em dois actos,

 

Primeiro acto,

 

Despe-se o poema

Na cama invisível da insónia

O poema mergulha nas mãos em silêncio do poeta

O poema liberta-se das amarras

Das amarras que aprisionam o poema

E o poeta,

 

O poema contorce-se

Gira nos lábios da Via Láctea

E todas as palavras do poema…

Soltam-se da pequena folha em papel

E todas as estrelas desenham sorrisos nos olhos do poeta,

 

Segundo acto,

 

O poema deseja

O poeta desejado

O poema grita

Nos lábios do poeta

Os uivos do poema envenenado,

 

Depois do poema em êxtase

O poeta começa a escrever nos cortinados do silêncio…

O poema

O poema sonhado.

 

 

 

Alijó, 17/01/2023

Francisco Luís Fontinha

segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

O cubo

 Um pedaço de azul roubou-me a noite

Dentro daquele cubo de vidro

Uma chuva de estrelas

Uma mãe que dá à luz uma estrela

Uma estrela que é filha do porteiro do cubo de vidro,

 

Os cortinados do pequeno cubo de vidro

Cortinados que apenas o sono sabe onde habitam

Uma miúda gira mostra a perna ao magala

Magala que às vezes se esconde no cubo de vidro

Quando a espingarda que transporta começa a disparar lágrimas de sangue,

 

O magala fuma os últimos cigarros da noite

Noite que vivia dentro do pequeno cubo de vidro

Tocavam os sinos

Erguiam-se os mortos das campas ensonadas onde aprendi a gatinhar

E trazia às vezes o mar junto ao peito,

 

Um pedaço de azul

Azul nuvem

Dentro do cubo de vidro

O vidro opaco da miséria

Que o magala trouxera do ultramar,

 

O magala escrevia versos

Versos que morriam à nascença

Poemas que se masturbavam na alvorada

Na primeira luz da manhã

Da manhã de uma espingarda.

 

 

 

 

Alijó, 16/01/2023

Francisco Luís Fontinha

Assimetria

Uma criança pode ser tudo o que quiser; basta sonhar.

Eu menino

Eu criança

Eu sonhava

Sonhava com coisas

Coisas esquisitas

Coisas sem nexo

Sonhos invisíveis

Sonhos sonhados

Sonhos,

 

Coisas sonhadas

Coisas

Sons que me entravam pelas frestas da manhã

E cheiros que eu coleccionava nas mãos,

 

Sonhos

Malditos sonhos de sonhar

Que eu

Eu criança

Eu menino

Eu sonhava

Sonhava com sonhos que sendo sonhos não eram sonhos,

 

Sonhava com merdas

Merdas que hoje são os meus sonhos

Sonhos de merda

Coisas esquisitas,

 

Coisas de merda

Os sonhos

A vida de um sonhador

Sonhar que vive

Dentro da morte de um sonho,

 

O frio

A chuva dentro do frio

Em cio

As tardes junto à Torre,

 

O rio

Naquele maldito rio

Onde habitam esqueletos

Onde brincavam as crianças

As crianças que sonhavam,

 

Por isso

Eu menino

Eu criança

Eu sem sonhos,

 

Sonhava

Gritava

Sonhava com barcos em papel

Sonhava ser pedra

Alicate

Martelo

(para foder a cabeça a alguns)

Sonhos

Que sonhava

E morreram

Nos sonhos

De uma madrugada,

 

Os apitos

O clitóris disfarçado de sombra

Entre um sonho

O outro sonho

E a vindima,

 

Mais um dia

Mais um ano

Com sonhos

Sem sonhos

Destes tristes sonhos de menino,

 

(Uma criança pode ser tudo o que quiser; basta sonhar.)

 

Sonhar o quê?

 

Sonhos

Sem sonhos neste taxímetro a que apelidam de vida

Vida de sonho

Ou o sonho da vida,

 

Feliz aquele que não sonha

Feliz o menino que nunca sonhou

Sonhou feliz no sonho

Quando do sonho

Uma árvore se levantou

E gritou;

Que se fodam os sonhos

E que se fodam os sonhos de sonhar,

 

Há quem sonhe em morrer

E não consegue matar-se,

Mata-se uma

Duas

Mata-se três…

Três horas da madrugada,

E no final

Está vivo,

Está a sonhar

Que morto

Sonhou

De morto se levantou,

 

E ajoelha-se no altar

Não sonha

Mas reza

Ergue as mãos a Deus

Pelo sonho sonhado

Estar morto

Assassinado

Estar vivo

Escrevendo poemas…

 

Escrevendo poemas enquanto a vida me deixar

Por aqui

Por ali

Por aí,

 

Sonhar.

 

 

 

 

Alijó, 16/01/2023

Francisco Luís Fontinha