quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

Rio invisível

 

Íamos à montanha

Em busca das serpentes

E desenhávamos um rio invisível

Nas pedras adormecidas,

 

Depois

Descíamos à aldeia

E nunca encontramos o sono

Nas mãos de uma árvore,

 

Mas víamos as lágrimas

Que sobejavam das lareiras da insónia

E deste pequeno incêndio de tristeza

Acordavam as estrelas da madrugada,

 

E ficávamos sem a madrugada

Como ficamos sem a lua

Quando este mar salgado

Se suicidou no areal da saudade.

 

 

Alijó, 21/12/2022

Francisco Luís Fontinha

terça-feira, 20 de dezembro de 2022

A Janela

(ao meu avô Domingos)

 

 

Deixaste fugir

Os espantalhos dos campos de milho de Carvalhais

Fumaste todos os cigarros

Dos espantalhos dos campos de milho de Carvalhais

Ias à janela

Beijavas a lua

E voavas até ao apeadeiro mais próximo.

 

Cresceste

Fizeste-te louco

Caminhaste pelas calçadas e ruelas

De uma cidade morta

Com cheiro a incenso

E a sexo

E a merda.

 

Pensavas que os campos de milho de Carvalhais

Eram o mar disfarçado de pedra-pomes

Mas os campos de milho de Carvalhais

Eram canções de vento

Palavras enamoradas

Pensavas que os campos de milho de Carvalhais

Pertenciam às esplanadas

Onde fumavas cigarros de prata

Acepipes

E pequenas larvas.

 

Mas daquela janela

De onde conseguias observar a torre da Igreja

E todos os cacilheiros com destino a Santa Cruz da Trapa

Havia uma ponte invisível

Com odor a naftalina

E lábios de saudade.

 

Cansavas-te dos campos de milho de Carvalhais

Galgavas as sombras

E as ribeiras de pólen

Dos campos de milho de Carvalhais

E à janela

Iluminada pelo silêncio da noite

Lá estava ele o coitado do espantalho

Com mãos de vidro

E pernas de vergonha…

 

Não tenhas medo

Meu querido irmão

Das infinitas palavras que habitam o dicionário

Não tenhas medo

Meu grande irmão

Do sono

Da paixão

E da morte,

 

Tudo faz parte

Tudo é vida

(Tudo é fado)

E umas vezes é sorte.

 

Escrevia cartas ao sono

O garoto mimado

Como se o sono fosse um gajo porreiro

Mas o sono

Que tal como os campos de Carvalhais

É um grande filho da puta

Embriaga-se durante a noite

E durante o dia

Vai à janela de Carvalhais

Puxa de um cigarro

E em silêncio

Apanha o primeiro cacilheiro com direcção a Santa Cruz da Trapa…

 

Os livros comiam-me

(e se ainda fossem gajas!)

Agora livros…

 

Quem quer um gajo com livros

Com discos

Com isto e aqueloutro

Sem tudo

Com nada

Ausente

Astronauta

Cançonetista

E nas horas vagas

Trapezista de circo ambulante

E stripper.

 

Íamos à Cárcoda

Sentávamo-nos sobre as pedras

Conversávamos de gajas

E até me queria impingir uma gordinha

Com sotaque de futura empresária…

Não gostei da ideia

(não por a moçoila ser gordinha, mas não nasci para ser capitalista)

E vender artesanato

Pior ainda…

Não nasci para nada.

 

Pelas seis horas da madrugada

A janela

Aos poucos

Fechava-se como se tratasse de um caracol

E escondia-se dentro do quarto,

 

E da algibeira

Sem perceber porque tinha lá pedaços de néon

E um cachecol das estrelas em papel

Acordavam as espigas de milho dos campos de Carvalhais,

 

E o silêncio era tal…

Que ouvíamos a respiração ofegante da tristeza.

 

 

 

 

 

 

 

Alijó, 20/12/2022

Francisco Luís Fontinha

Santa milagreira

 Desce do altar

Santa dos milagres nocturnos

Abraça o teu filho que habita esta cidade

Pega-lhe na mão

E leva-o

E senta-o

Junto ao mar.

 

Limpa as lágrimas do teu filho

Santa milagreira das palavras em doce néon

Dá-lhe um barco e um areal

E dá-lhe também o sossego

E a fortuna

E o céu

E perdoa-lhe todos os pecados

Desde que nasceu

Até ao pôr-do-sol

E todo o mal

Amém.

 

Dai-lhe senhora

O perfeito juízo

Enquanto ainda temos estrelas na eira

E luar no estábulo

E sabes

Minha querida santa milagreira

Desculpa lá aquilo do abstracto

Que de parede em parede

De olhar em olhar

Ressuscitou

Fez-se homem

E hoje é motorista da Carris.

 

Vê lá tu…

 

Motorista da Carris.

 

Depois

Minha querida santa milagreira

Aparecia o quinze

Pegava nos bêbados todos

E despejava-os em Belém

Numa qualquer esquina…

 

E tu

Minha santinha

Dormias no altar misericordioso da saudade.

 

Minha santinha dos aflitos

Com coração de brasa

E silencio nas mãos

Pega no terço

E reza

Reza muito

Reza para que o quinze nunca avarie.

 

Limpa as lágrimas do teu filho

Santa milagreira das palavras em doce néon

Dá-lhe um barco e um areal

E dá-lhe também o sossego

E o céu

E o eterno sossego

Da carne

E do espírito.

 

 

 

 

 

Alijó, 20/12/2022

Francisco Luís Fontinha

Sílaba estrelar

 

Uma pequena sílaba estrelar

Solta-se dos lábios de uma flor

Não faz parte do poema

Não é o mar…

Nem é a dor.

Não é o cansaço

Dos ventos da madrugada

E também não é a Primavera

Que nunca me trouxe nada.

E dos lábios desta pobre flor

Solta-se uma lágrima

Uns dirão que é a chuva…

Outros que é a dor

E outros

Dirão que não é nada.

 

 

 

Alijó, 20/12/2022

Francisco Luís Fontinha

segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

Gaivotas em silêncio

 Não inventes o mar dos monstros marinhos

Não deites fora a espátula que dá forma à tela

E que faz com que os pássaros brinquem sozinhos

Não. Não deites fora o vento que faz trabalhar os moinhos

Enquanto na tua mão brinca um barco à vela.

 

Não penses que o mar é só teu

E que da ondulação

Um cachimbo de prata

Se alicerça na tua boca.

 

Não. Não penses que ganhastes o céu

Porque nem à terra pertences. Não deites fora as gaivotas do silêncio

Que povoam os cabelos amargurados da madrugada.

Não

Não deites fora a magreza dos pinheiros mansos

Quando da montanha vem a escuridão.

 

Quando a montanha é o teu coração.

Não. Não inventes o sono nas planícies

Enquanto o sono é apenas um voo

Uma constelação de silêncios

Que morre nos lábios das estrelas.

 

Não. Não digas que a manhã está nublada

Só porque a manhã está nublada,

 

Ou porque morreu uma gaivota,

 

Morrem todos os dias milhões de gaivotas

Morrem por dia

Milhões de crianças

Mulheres

E versos

E aterra sempre a girar.

 

Suicidam-se por dia

Não sei quantos homens e mulheres

E que ambos acreditam que o suicídio é a solução…

E o suicídio não é a solução

Para homens

Para mulheres

Quanto mais para uma gaivota.

 

Não inventes o mar

Nas mãos daquele que não gosta do mar.

 

E não culpes Deus porque o dia está nublado,

Porque Deus não entende de meteorologia

Nem de matemática

Nem de nada;

Deus é apenas um colar de pérolas

Que transportas ao peito

E quando uma gaivota está em silêncio…

Deus… está a cagar-se para a gaivota

E para ti

E para mim

E para a terra

E para todas as gaivotas em silêncio

E para os versos das gaivotas em silêncio.

 

Não inventes o mar

Nas mãos daquele que não gosta do mar

Não desejes que o mar

Entre pela tua janela

Quando tão pouco tu tens uma janela…

 

E que esta gaivota não seja estúpida.

 

 

 

 

 

Alijó, 19/12/2022

Francisco Luís Fontinha

Oração

 

Rezavas por mim

Enquanto a noite se esquecia de ti,

E muitas vezes,

Muitas,

Levantaste-me do chão,

Quando eu tombava como uma árvore envenenada,

 

Procuravas-me pela noite

Quando não sabias se eu estava vivo

Ou morto,

Mas estando vivo

Estava ausente de ti,

Ausente de mim.

 

Rezavas por mim

E tinhas de ouvir as putas

Que em vez de atenuarem a tua dor…

Envenenavam-te…

Como se eu fosse um bandido;

Sim,

Talvez tenha sido um bandido,

Mas tu,

Tu nunca desististe de mim…

 

E rezaste tanto!

 

 

 

Alijó, 19/12/2022

Francisco Luís Fontinha

domingo, 18 de dezembro de 2022

Meu grande amigo

 Come a sopa menino

Come a sopa

Se comeres a sopa em pequenino

Serás um dia poeta

Ou travesti

Ou puta

Ou outra qualquer coisa,

 

Serei tudo

Menos puta,

 

E com muito sacrifício comi a sopa toda,

 

Hoje detesto sopa

E detesto ter sido pequenino.

 

Sopa de hortaliça

Sopa e sopa e sopa

Com estrelinhas (estrelinha que te guie e caralhinho que te foda, como dizia um amigo meu falecido)

Come a sopa meu menino

Come

Come a sopa meu pequenino.

 

E tive amigos

Amigos que partiram

Amigos que comiam a sopa

Amigos que se perdiam no caldo

E eu nunca comi caldo. (felizmente)

 

Às vezes diziam-me que o caldo era uma merda

Mais noostan do que castanha…

E as couves e as batatas ficavam de ressaca na horta do Alfredo,

 

Cinco contos de nada

Metade de um grama em pequenos voos

Uma colher

Um isqueiro

Tanta merda para um caldo

Tanta merda meu Deus…

E às vezes tombavam como tombam as árvores,

 

Éramos muitos

Éramos tanto que parecíamos um exército de zumbis

Uns para cima

Outros para baixo

E outros tantos debaixo da terra,

 

Metade de um grama

Um grama e outra metade

Uma noite a olhar as estrelas

E na outra noite a olhar o cadáver de um amigo,

 

(a vida é uma merda, amigo Fontinha)

 

Que sim

Que era

Que a vida é uma puta vestida de negro

Traz um terço nas mãos

E vai à missa ao Domingo…

Ai meu amigo!

 

Que saudades eu tenho de ouvir-te a noite toda…

(eras um chato do caralho, mas eu gostava muito de ti, meu grande amigo)

 

E sabes meu amigo

Putas não são aquelas que fodem com todos os gajos…

Putas são aquelas que não sendo putas

Fodem o juízo e cabeça de um gajo

E sim

Essas vão à missa ao Domingo

Confessam-se na sexta-feira

E transportam no peito – Corpo de Cristo.

 

Que estejas em paz, meu amigo.

Em paz, meu grande amigo.

 

Amém.

 

 

 

 

 

Alijó, 18/12/2022

Francisco Luís Fontinha