Se me pedissem para parar
a extinção do Universo
Não o fazia
Não me levantava da cadeira
Deslocar-me à cozinha
E carregar no botão…
Egoísmo?
Não
Estou cansado
Extremamente cansado
Cansado para me levantar
desta cadeira
Andar uns quantos passos
atá à cozinha
Erguer a mão direita em
direcção ao botão…
E carregar
Com força
Portanto
Esqueçam
Não o faço
Depois
Pergunto-me o quão
infinito é o Universo
Que se expande
Que não se expande
Não o sei
Uns dizem que sim
Que não
Que um dia o Universo vai
começar a contrair
E tudo voltar a ser
apenas um pequeno ponto
Do tamanho da cabeça de
um alfinete
E recomeçará tudo
novamente
Se eu pudesse
Se eu pudesse conversar
com a primeira pedra a habitar a Terra
Se eu pudesse
Fazia-o
Fazia-o sem pensar duas
Três
Milhões de vezes
Ao cubo
Dentro do cubo
O vazio
As nuvens que às vezes
aparecem nos teus olhos
(sabias que os teus olhos
são poemas de amor?)
Pegava-lhe na mão
Sentava-me a seu lado
E perguntava-lhe porquê
Provavelmente
A pedra
A primeira pedra
E depois
Talvez ficasse sem jeito
Que emoção
Conversar com a primeira
pedra a habitar a Terra…
Vamos tomar um café?
Olho o cubo que dorme
todas as noites sobre a minha secretária
Olho-o
E pergunto-me se pelo
facto de eu ter um cubo
Um cubo pintado de
encarnado
Poisado sobre a
secretária
Sou mais ou menos feliz
Se sobre a minha
secretária não tivesse esse cubo
Esse cubo pintado de
encarnado
Era menos ou mais feliz?
E os milhões de lares
Espalhados por aldeias
vilas e cidades
Que não têm um cubo
Um cubo pintado de
encarnado
Sobre a secretária
Na casa de banho
Cozinha
No quarto
Qualquer sítio
Em qualquer lugar
São mais felizes então?
Claro que não
Depois da primeira pedra
Vem o primeiro primata
A primeira borboleta
(a primeira flor)
A primeira mulher
Depois
O primeiro beijo
O primeiro poema
(e pergunto-me qual terá
nascido primeiro: o beijo ou o poema?)
Depois
Depois nasce a primeira
cadeira
O primeiro livro
A primeira carícia
A primeira lágrima
Depois
O primeiro livro
Nasce o primeiro livro de
poemas
A primeira flor em papel
A primeira lua
E o último luar
(Claro que não)
A primeira troca de
olhares
A primeira Primavera
A primeira paixão
(até agora ainda ninguém
morreu desde o começo do Universo)
E para estar aqui hoje
Agora
Foi necessário nascer o
segundo primata
O terceiro primata
O quarto primata
E agora sim
Agora já podemos matar
algum ou alguns dos primatas
(O primeiro cigarro)
(neste momento um dos
primatas é preso por excesso de velocidade)
Depois
Depois nasce a primeira
criança primata
Ouvem-se os primeiros
gritos
O primeiro choro
A primeira birra
O primeiro cocó
As primeiras palavras
Os primeiros números
As primeiras brincadeiras
As primeiras palavras
ditas
E depois
As escritas
A escola
A primeira lareira
Do primeiro abraço
Quando se lê o primeiro
poema
E agora sim
O beijo
Os cabelos
Os lábios
As tuas cochas
Os teus olhos quando vês
a primeira estrela
A primeira dor
O primeiro desejo
A primeira árvore
Os meus primeiros
pássaros
E os meus primeiros
barcos
A primeira noite
A primeira noite dentro
do cubo
Do cubo pintado de
encarnando
(e quando me dizem que
sou um falhado
Um perfeito idiota
O coitadinho
O maluquinho…
Eu penso
PORRA
Então não foi o meu espermatozóide
Que entre milhões
conseguiu sobreviver?
E se não tivesse sido o
meu espermatozóide o escolhido?
Se fosse outro…
Eu podia ser mulher
Homem
Mais baixo
Mais gordo
Menos parvo
E menos idiota do que eu
sou
Mais simpático
E menos anti-social…
E continuo a olhar este
parvo
Este parvo cubo
O cubo mais parvalhão que
conheci
Desde que me lembro de
conhecer coisas
(Coisas meu amor
Coisas)
O primeiro dia
Do primeiro sol
As primeiras chuvas
O primeiro calor
O último frio do Inverno
Antes do primeiro Verão
Depois
Depois meu amor
O meu primeiro machimbombo
A minha primeira cidade
A cidade perdida
Na mão do feio comboio em
direcção ao mar
Ao mar
Meu amor
O meu primeiro mar
Meu mar
O meu primeiro mar
(Depois
O primeiro cancro
O segundo cancro)
Se me pedissem para parar
a extinção do Universo
Não o fazia
Não me levantava da cadeira
Deslocar-me à cozinha
E carregar no botão…
Egoísmo?
(Não)
Apenas porque estou muito
Muito
Mesmo
Muito cansado para me
erguer desta cadeira.
Alijó, 16/12/2022
Francisco Luís Fontinha