Um quadro suspenso na sala nua, num dos cantos, uma poltrona pobre a fria alimentava a insónia que todas as noites se abraçava à janela virada para um escuro quelho, nesse quelho, uma das casas pobres que por ali brincava, imaginava o sol poisado sobre a acácia do senhor Augusto, e debaixo da acácia a menina Florbela lia o pequeno caderninho que o José lhe tinha oferecido pelo Natal do ano anterior.
Florbela odiava o Natal.
Ponto e nada de discussões.
O senhor Augusto
acreditava que as pedras cinzentas voavam como voam as gaivotas, como tal,
todas as noites, depois de vários dias a construir uma rampa de lançamento, entretinha-se
durante horas a ajudar as pedras cinzentas a levantar voo; algumas caiam sobre
a acácia onde Florbela, nas tardes felizes, lia o pequeno caderninho que José
numa noite de angustia tinha escrito, e em vez de ter sepultado o caderninho
junto à acácia, ofereceu-o à doce e querida menina Florbela.
A acácia andava sempre
tristinha, quanto à menina e querida e doce Florbela, tinha dias; uns felizes,
outros tristes e outros saltava de galho em galho na busca do melhor poema.
Quanto ao caderninho,
além de palavras, habitavam nele pequenos rabiscos que faziam recordar os campos
de milho de Carvalhais, onde de janela aberta, José escrevia desalmadamente e
apressadamente com medo que fosse esta a sua última noite de insónia.
Bom dia, senhor António.
Bom dia, menina e querida
e doce menina Florbela.
Hoje não foi ao mar?
Não menina, hoje não fui.
Os barcos de papel
estavam estacionados junto à porta da sala, e não acreditando no que assistia, o
senhor Augusto, que momentos antes a menina e querida e doce Florbela tinha
apelidado de António, observava o José em amena cavaqueira com os barcos de papel
e o quadro que estava suspenso na parede fria e nua, ou seria a velha poltrona
que era fria e nua?
E o senhor António cismava
que todas as noites, enquanto guardava a acácia para não mudar de cor, as
estrelas poisavam junto ao mar, depois, tal como as pedras cinzentas voavam
como as gaivotas em direcção aos campos de milho de Carvalhais, onde o
franganote José, à janela do quarto do meio, enquanto fumava, imaginava as
personagens do seu pequeno caderninho em brincadeiras que quase pareciam os
meninos e meninas quando saiam da velha escola junto à igreja.
E ela a dar-lhe com o
senhor António.
José não imaginava que a
menina e doce e querida Florbela odiava o Natal, tão pouco que esta trocava o
nome do senhor Augusto por António, e que este último, acendia os cigarros com
as grossas lentes que transportava na cara.
O dia lamentava-se de ter
acordado, e a doce e querida e menina Florbela, sempre que se aproximava o
Natal, entrava em pânico, desmaiava e só acordava em meados de Janeiro; o
senhor António deixou de olhar as acácias e o senhor Augusto que já foi António
e hoje é José, desenhava círculos de luz com olhos verdes nas paredes invisíveis
do beijo apaixonado que de vez em quando se abraçavam aos lábios da menina e
querida e doce Florbela;
Sinto a tua falta,
querido José!
Minha ou do caderninho?
Bom dia, senhor António.
Bom dia, menina e querida
e doce menina Florbela.
Hoje não foi ao mar?
Não menina, hoje não fui.
E a ira era tanta que um
dia, de cigarro na boca, pulou a janela do quarto do meio, e já estatelado nos
campos de milho de Carvalhais, finalmente adormeceu.
Na sala, a velha poltrona
gemia de sono e a menina e querida e doce Florbela, de olhos cerrados, imaginava
o mar deitado no colo, depois, pegava na mão trémula do querido José, este
erguia-se dos campos de milho de Carvalhais e dizia-lhe:
Querido, posso pedir-te
um desejo?
Sim, claro.
Tira o mar que trazes na
algibeira e oferece-mo, como me ofereceste o caderninho.
E o José em modos um
pouco rudes, mete a mão na algibeira, mas em vez de tirar o mar, tirou o poema
que tinha escrito aos filhos do mar e aos irmãos do silêncio: a saudade.
E o senhor António
cansou-se de guardar a acácia e de ajudar as pedras cinzentas a voar.
Hoje, dorme sobre uma secretária
em madeira antiga na ânsia que alguém o olhe ou lhe diga ao menos,
Bom dia, senhor António.
Bom dia, menina e querida
e doce menina Florbela.
Hoje não foi ao mar?
Não menina e doce e
querida Florbela, hoje não fui.
E quando o José se ergueu
dos campos de milho de Carvalhais já era dia, depois o dia trouxe a noite, e a
noite, transformou o senhor António em senhor Augusto…
Como os barcos em papel
estacionados junto à sala; uma tragédia, menina e doce e querida Florbela, uma
grande tragédia o que aconteceu com o nosso querido José.
É verdade, senhor António.
Hoje não foi ao mar?
Alijó, 04/11/2022
Francisco Luís Fontinha
(ficção)