O amor
E uma carta sem remetente
Nos beijos
Quando os lábios são
montanhas
E o abraço
Que procuras em mim
São cansaços
Instantes de ti
Alijó, 23/10/2022
Francisco Luís Fontinha
A última porta da noite. Escondo os olhos na primeira gaveta da mesinha-de-cabeceira, lá dentro, alguns pertences dos meus pais, cartões de identidade, recordações que aos poucos vou deitando fora de mim, pertences esses que vão ficar esquecidos como um dia ficarão esquecidos todos os meus pertences; numa gaveta de uma distante mesinha-de-cabeceira.
Às vezes sinto-me um
cacilheiro desgovernado ou um machimbombo louco em andamento pelas ruas de uma
cidade que nunca existiu, que eu nunca vi, que eu não conheço, e vestido de
cacilheiro faço-me à vida, saio de casa, pego no terceiro ou quarto cigarro da
manhã, encerro a última porta da noite, e depois de andar em círculos pelo rio,
estaciono junto ao café e tomo o primeiro café do dia e fumo o quinto cigarro
do dia e chego á triste conclusão que preferia ser um louco machimbombo
conduzido por um louco, não em círculos pelo rio, mas em contramão pelas ruas
de uma cidade que eu não conheço, nunca conheci e não quero conhecer.
O mar está revolto, meu
amor e, não adianta esconder-me dessa cidade que não conheço, cidade maldita
que me viu nascer e me abandonou, cidade que se ergue em mim todas as noite e
que teimo em não regressar; sabes, meu amor, tenho medo dos machimbombos e dos
loucos que passeiam os machimbombos por esta cidade em chamas, onde ao longe,
sinto o cheiro dos meus quadros, metade em cinza, outra metade, embalsamados
como se embalsamam os corpos das flores da Primavera.
E nesta cidade que eu não
conheço, que nunca conheci, observo o miúdo que está sentado no portão de
entrada de um quintal recheado de mangueiras e que às vezes me questiono que
quintal será este, a quem pertenceria este quintal, que miúdo é este que teima
em olhar as nuvens e espera pacientemente o regresso do avô Domingos, que pela
mão passeia um velho machimbombo pela cidade, cidade que não conheço, cidade
que nunca vi, cidade que não quero conhecer.
Mas meu amor, acabamos
sempre por desconhecer as cidades. Transportamos ruas, ruelas, casas, casinhas,
flores, cacilheiros, putas e marinheiros, mas nunca a saudade.
E da primeira gaveta da
mesinha-de-cabeceira, após encerrar a última porta da noite, vem a mim o cheiro
intenso da terra queimada, do cheiro do capim húmido, da tua agonia enquanto a
morte não te levava, dos constantes pedidos a Deus para que através de um
qualquer milagre te salvasse, mas tal como a cidade que me abandonou, que eu
nunca conheci, que ainda hoje não conheço, também ele, também eu, sentamo-nos
junto ao rio a olhar os machimbombos a desenhar círculos de sémen sobre os
temidos lençóis que sobejaram da noite, que tal como a cidade, não me pertence
e nunca me pertencerá.
Nunca serei dono da noite
porque a noite é escura, porque a noite é fria, porque a noite sabe a morte e a
uma cidade que se afunda nos três pilares em aço das pequenas mãos do silêncio;
e hoje, queria ser como tu.
A última porta da noite.
E este machimbombo
acorda-me durante a noite, pega na minha mão e leva-me em pequenos passeios por
esta cidade que eu não conheço, que eu nunca conheci e que hoje sinto medo de
recordar. Acordas-me sem perceberes que nunca adormeci antes de encerrar a
última porta da noite, sem perceberes que dentro de mim habitam cacilheiros em
papel, machimbombos de porcelana e flores de Inverno.
Que o fino fio de nylon
que puxava o machimbombo hoje trago-o na algibeira conjuntamente com os
cigarros, as chaves de casa e o endereço da terceira gaveta da tua
mesinha-de-cabeceira. E em caso de endereço insuficiente, é favor devolver ao
remetente…
Mas qual remetente?
Se esta cidade não
existe, se esta cidade nunca existiu, se esta cidade é apenas uma velha
fotografia que não sei porquê… está na gaveta da mesinha-de-cabeceira, e é
pertence dos pertences deles.
Estes barcos chateiam-me.
Estes barcos são agora sucata e vómitos de saudade, depois percebo que o
silêncio é o construtor da última porta da noite que todos os dias encerro e
que a todos os dias se abre; e que dos olhos acordaram as preguiçosas
madrugadas onde uma janela se abre e que nunca mais se encerrará como se
encerra a última porta da noite.
Desenho as estrelas nos
teus olhos. Desenho as madrugadas nos teus lábios, e quando regressam a mim os
machimbombos que deixei naquela cidade que nunca conheci e ainda hoje não
conheço, percebo que sou um pedaço de aço nas mãos de um metalúrgico que não se
cansa de escrever na escória do meu silêncio; aqui me perco onde guardo os teus
lábios.
E há sempre um remetente
que nos espera, numa cidade que não conhecemos, numa cidade que inventamos para
adormecer durante a noite e encerrar a última porta desta; e ele inventou o
sono.
E das mangueiras do meu
quintal apenas ficaram os teus braços; e as mãos com que afagavas o meu rosto…
E a última porta da
noite.
Alijó, 23/10/2022
Francisco Luís Fontinha
Sento-me nesta cadeira rabugenta
E espero que a Nortada
Me leve,
Qualquer lugar, qualquer
dia,
Todos os dias,
Sento-me nesta cadeira
rabugenta
E acredito que das minhas
palavras
Nascerão as primeiras chuvas
da manhã,
Um poema
Ou uma simples lágrima.
Sento-me
E percebo que esta
cadeira não me pertence,
Que esta cadeira em
marfim
É a madrugada disfarçada
de mendigo,
O mesmo mendigo que me
visita todas as noites
E me pede cigarros
E me pede azeite para a
candeia das almas.
Sento-me nesta cadeira
rabugenta
Acreditando que a cidade
arde
Na algibeira de um magala
em apuros,
De espingarda nos lábios.
E desta cadeira rabugenta
Oiço os gemidos ossos
Sobre o peito da alvorada…
Quando já regressaram a
mim todas as tempestades do sémen enforcado.
Alijó, 22/10/2022
Francisco Luís Fontinha
Vão morrendo as palavras de amar
quando desperta no amanhecer
o quadrado silêncio mergulhado no círculo lunar,
Faço-me à vida,
caminho sonâmbulo sobre a fogueira dos meus poemas
até que eles se transformem em nada,
olho-me no espelho da agonia, sinto na garganta a tempestade da paixão,
carrego nos ombros o peso do meu próprio caixão,
em vidro, e com fotografia a preto e branco para o mar,
saboreio o teu corpo nas pálpebras verdes dos livros não lidos,
perco-me em ti... sem saber se amo, sem saber se estou vivo nesta campânula de
lágrimas,
e o desassossego inventa-me como se eu fosse um papagaio de papel,
de muitas cores,
como muitas cartas de amor
destruídas pelas suicidas lâminas da geometria,
Tenho saudades de ti...
minha Lisboa, meu amado Tejo... meu amante Cais do Sodré,
perseguia nas paredes húmidas da noite um corpo em translação,
uma puta que procurava um ombro de gesso,
um gajo embriagado que cuspia finos fios de fogo...
e terminava quando a cidade acordava,
eu amava, eu não amava...
eu sentia nas amoreiras flores o beijo de ninguém,
o pavimento paralelepípedo da tristeza começava a transpirar,
ouviam-se os gemidos delas, ouviam-se os gemidos deles...
e ao longe,
um apito encurralado entre carris de aço em direcção a Belém,
(Vão morrendo as palavras de amar
quando desperta no amanhecer
o quadrado silêncio mergulhado no círculo lunar),
Esquecia as mãos na algibeira,
iluminava-me na fragrância madrugada quando um banco de jardim corria para o
rio,
misturava-se com um velho Cacilheiro, às vezes... tossindo, às vezes... às
vezes coxeando...
como um mendigo prisioneiro de um vão de escada,
como um marinheiro em busca de sexo, drogas... e um par de asas...
nunca voei,
e havia noites que sobrevoava a minha amada Lisboa,
como um louco,
como um prego de aço no barbear da manhã...
disfarçava-me de ponte metálica...
e desenhava sorrisos nos vidros pintados de negro embalsamado,
até morrerem todas as palavras de amar...!
Francisco Luís Fontinha
Quarta-feira, 22 de Outubro de 2014
Meu querido,
Não sei como serias hoje,
tão pouco se gostavas de Proust, e se mergulhaste “Em Busca do Tempo Perdido”
ou “À sombra das Raparigas em Flor”, não sei, se tal como eu, enquanto a noite
desce sobre mim, pensas como seria adormecer no colo de AL Berto ou estares uma
tarde inteira a fumar cigarros com o Lobo Antunes ou como seria o rosto do
Pacheco enquanto esgalhava uma.
Não sei, nem quero saber.
Também não espero pedir-te perdão, porque o que está feito está feito e, se
tivesse de pedir perdão a alguém, pedia-o certamente a mim, evidentemente.
Cansei-me muito, foram
noites intermináveis e sem dormir, foram noites de ti enquanto eu pensava em
mim, e quando percebi que jamais voltaria a ver os pássaros em pequenos voos de
miséria, eis que esses mesmos pássaros voltaram para me atormentar e invadir
novamente as minhas noites; não, meu querido, tu não tens culpa que as nuvens
tenham regressado novamente.
Não sei o que pensaria
Albertine de tudo isto, mas certamente pensaria o mesmo que eu, isto é, não
pensava; talvez um dia percebas porque morreram os jardins da minha vida.
Naquela altura, meu
querido, desconhecia o poder do fogo, porque a lareira onde me abrigava
pertencia às manhãs submersas dos encalhados campos de milho de Carvalhais, e
se pudesse estar sentado naquela pedra cinzenta, e se pudesse enquanto sentado
fumar os meus últimos cigarros da tarde, e se pudesse olhar o Pacheco a esgalhar
uma, à porta de uma qualquer casa de banho de um qualquer bar, acredita meu
querido, fazia-o, mas não o posso fazer.
E como já te disse
anteriormente, sim, cansei-me muito. Sim, chorei imenso. E sim, fui energúmeno
para ti.
Mas… meu querido, como
seria a madrugada se o vento tivesse morrido naquela noite fatídica em que
voaste para o infinito; e talvez um dia, e talvez agora, te diga que foi melhor
o vento não morrer.
Enquanto converso com a
Adelina ou com a Maria Clara, percebo que fui um sacana para ti, mas depois regressam
a mim as lágrimas infindáveis das três tristes serpentes sem cabeça, e quando
converso com a Albertine penso como seriam os teus olhos; possivelmente iguais
aos meus.
Mas os teus olhos um dia
pertencerão às flores em cadáver que brincam no meu jardim, e pensando melhor,
também não quero saber dos teus olhos, nem a cor dos mesmos.
Sabes Swann, tanta gente
a quem tinha de pedir perdão, mas o tempo escoa-se pelas frestas da noite, e
quando percebo que tenho sobre o corpo a espada da tristeza, oiço as vozes
alegres dos monstros das noites em que te sentavas no meu colo enquanto te lia
um poema de AL Berto, e do 14 de Janeiro, hoje, apenas tenho saudade de quando
o mar entrava pela janela, e tu, sonhavas com as marés de silêncio que caiam
sobre a mesa da sala de jantar.
Na algibeira levávamos os
pregos sem cabeça, sem braços, apenas um corpo mortificado e doente, depois, tínhamos
as Pachecadas que alimentavam as nossas tardes depois de voarmos sobre uma cama
de nódoas num qualquer segundo andar, num qualquer quarto, de uma qualquer
cidade.
E sabes, Albertine, depois
da morte apenas ficam as fotografias.
Mas tu não percebes,
claro que nunca vais perceber porque o fizeram; acredita que nem eu percebo
porque não mataram o vento naquela triste madrugada.
Pertenço-te e não te peço
perdão, de qualquer forma, o vento ainda ronda pelos campos de milho de
Carvalhais.
E depois de levar o
almoço à tia Adosinda, ela carinhosamente, dava-me dois e quinhentos ou cinco
escudos, descia a rua, estacionava no Sr. Grifo e mergulhava nas carteiras de
cromos ou nos chocolates.
A tarde separa-se das
tuas mãos e da janela ouvem-se as crianças em pequenas brincadeiras, sobre o
meu peito, poisas a cabeça, e num ápice, tal como o vento que não morreu
naquela madrugada, percebemos que somos instantes, instantes num quarto de
vento.
E não, não te peço
perdão.
Nunca te vou pedir
perdão.
Alijó, 22/10/2022
Francisco Luís Fontinha
(ficção)